31.12.08

BOM ANO


30.12.08

ABRAÇO, PÁ



Faz hoje um ano que o Olímpio Ferreira partiu inesperadamente para lugares mais sossegados. Este texto não pretende homenageá-lo, como sucede com os textos do Belo livro cuja capa acima se reproduz. Acontece que há coisa de um mês o Rui Almeida ofereceu-me este livro. Acontece que o estive a ler esta manhã, comovido e, de certo modo, surpreendido pela rara autenticidade que tinge aquelas páginas. Enquanto lia os relatos, os poemas, os desenhos, as lembranças, também eu me fui lembrando. É desse lembrar que quero dar conta. Lembro-me de ter conhecido o Olímpio Ferreira no lançamento do livro Maga Klimt, de Miguel Granja, para o qual fui convidado pelo Nuno Moura, à época editor da Mariposa Azual. Estávamos, salvo erro, em 1999. Eu acabara o curso de Filosofia e a vida não me corria bem. Ainda assim, resolvi marcar presença no primeiro de não mais que meia dúzia de lançamentos de livros onde estive até hoje. O cenário, no subsolo da Praça do Príncipe Real, era agradável. O ambiente era o de um lançamento de um livro. Algo deslocado, sem conhecer quem quer que fosse, agarrei-me a um copo de vinho e procurei resistir trocando algumas palavras com o Nuno. Também reservado a um canto discreto, estava o Olímpio Ferreira. O Nuno apresentou-nos e ficámos os dois na conversa. Já não me recordo bem sobre o que falámos, mas lembro-me de termos trocado umas palavras sobre história, filosofia, livros. Uns meses depois, fiquei a saber que o Olímpio trabalhava numa livraria em Entrecampos. Fiz-lhe uma visita com uma edição de autor na mão. Era o meu segundo livro, isto já em 2000. Um livro francamente péssimo. Eu não percebia nada de nada, muito menos de edição e de distribuição de livros. Foi ao balcão daquela livraria de Entrecampos que o Olímpio me ajudou a elaborar uma nota de consignação para ir distribuindo os livros pelas livrarias que o aceitassem. E, para meu espanto, não foram poucas. Algo apenas inteligível à luz da qualidade literária da nota de consignação. Depois destes dois encontros, perdi o rastro ao Olímpio. Mas nunca me esqueci dele, ao contrário da maioria das pessoas a quem também perdi o rastro depois de ter optado por deixar Lisboa e vir viver para Caldas da Rainha. Reencontrámo-nos, mais coisa menos coisa, sete anos depois, neste espaço virtual. Um dia o Olímpio escreveu-me um e-mail a pedir-me um endereço postal para me oferecer um exemplar da revista Intervalo. E em Janeiro de 2007 escreveu-me um curioso e atento e-mail por causa de um post sobre Fernando Guedes e de algumas dúvidas que procurei resolver aqui. Dizia o e-mail:

Caro Henrique,

Não sei se tens mais fontes além da wikipedia, mas fiquei com grandes dúvidas sobre a nota biográfica que dedicaste ao Fernando Guedes. Sempre achei que a Livraria Leitura tinha sido fundada e era propriedade do Fernando Fernandes (e do Carvalho Branco da Brasília Editores), até à recente compra pelo grupo Civilização. Fui ver a biografia oficial do Fernando Guedes no site da Verbo e não há referências à Leitura, nem à Sogrape. Há aliás uma discrepância nas datas: 1929, diz o site da Verbo, e não 1928. Também encontrei uma lista de condecorados com uma medalha qualquer da Câmara do Porto: está lá o Fernando Fernandes, na qualidade de fundador e proprietário da Leitura, e um Fernando Guedes, na condição de presidente ou coisa parecida da Sogrape. Tudo isto são coisas de somenos, claro, e nem sei como ter certezas, mas achei melhor alertar-te, ainda assim.

Abraço, pá.

Olímpio

É esta atenção que hoje me emociona. Felizmente tenho tido alguns leitores atentos, infelizmente não posso corresponder a todos da mesma maneira. Por isso me sinto tão mal quando lembro pessoas assim. Pesa-me a consciência de não saber ser como elas.

Micro #21

No bairro de Campo de Ourique, uma anciã com uma boina de croché na cabeça faz questão de seguir nas ruas com o seu carro a abrir; a polícia já nem tem coragem de lhe dizer nada. Quando a sua viatura é obrigada a parar por causa de algum homem que tem o azar de passar a rua, ela comenta bem alto ao volante:
- Homens?! Uns indecisos, nunca sabem por onde ir.
Certo dia, ela ia passando um a ferro, fez-lhe tal razia com o carro, que ele caiu no passeio. Rapidamente, fez marcha-atrás, parou, abriu a janela da máquina e olhando para o homem ainda estatelado no chão, afirmou:
- Homens?! Uns inúteis – arrancando de seguida prego a fundo.

Maria João

29.12.08

Resposta telepática a “ Segundas intenções”

Os portugueses são o povo mais desconfiado da Europa Ocidental, devido à sua situação geográfica. De um lado existe a grande Espanha, sempre feliz consigo própria, à qual resistimos com orgulho, e do outro o mar. A desconfiança dos portugueses deriva do isolamento geográfico que os leva, por um lado, a aventurarem-se no mundo, a viajarem ou a fecharem-se dentro do seu próprio território. Os portugueses quando se fecham dentro do país enlouquecem devido ao isolamento, foi por isso que aconteceu a grande aventura dos descobrimentos no passado, estavam a enlouquecer em massa, a solução foi o grande mar, com os seus devidos malogros também, que fazem parte da frágil auto-estima portuguesa. Factos recentes como a ditadura e a polícia política não são a resposta para a desconfiança paranóica do povo português: porque esses factores apenas acentuaram o isolamento geográfico já existente, mantendo-nos ignorantes, tristes, doentes, desconfiados e sós. A inquisição anteriormente já tinha acentuado esse aspecto também. A desconfiança paranóica dos portugueses deriva do seu isolamento e a única forma de o combater é não cairmos no triste orgulhosamente sós, que é o pior aspecto da nossa cultura.

Maria João

28.12.08

CIGANEAR

A propósito de uma das minhas escolhas do ano, uma prof comenta que ficou «sinseramente [sic] revoltada com o título colocado no insónia». O autor do post que me cita mudou o título do meu postO Cigano do Ano – para «O ***** [por respeito] do ano» (o resultado é confrangedor, mais ainda tendo em conta o vídeo respectivo). Noutro blog vi o mesmo post citado mas com o título «O Vendilhão do ano». Sobre o povo cigano ou assuntos relacionados escrevi eu, por exemplo, aqui; a última parte de um livro que publiquei em Dezembro de 2006, intitulado Estórias Domésticas & Outros Problemas, está pejada de personagens cuja característica essencial é o serem de raça cigana; toda a vida morei junto a ciganos, ainda hoje moro num bairro que é conhecido como o bairro dos ciganos. Há tempos, em conversa com o Álvaro, dizia-lhe não só do meu respeito mas da minha profunda admiração pelo povo cigano. Esse mesmo respeito, em conversas particulares, é bastas vezes contestado com estereótipos do género: povo difícil, povo ladrão, traficantes de droga, etc. São argumentos que não importa desmistificar neste momento, mas são falsos argumentos como qualquer estereótipo facilmente desmontável. Quero apenas reforçar o meu profundo respeito pelo povo cigano. É precisamente esse respeito que me faz sentir à vontade para utilizar o termo cigano em contextos como o que motiva esta explicação. À prof que se sentiu revoltada, respondo eu que não me revolta tanto que alguém se intitule prof e escreva sinceramente como ela escreveu como me revolta o preconceito que está subjacente àquela manifestação de revolta: porque detesto que se chame pretinhos aos pretos, porque odeio a hipocrisia de um pensamento politicamente correcto que treme perante a autenticidade, porque não suporto o respeitinho que herdámos de um salazarismo cristalizador e descambou nestes puritanismos enjoadinhos, porque ciganos são todos os que nascem ciganos mas também os que manifestam características historicamente associadas a esse povo – vendedor de feira é só uma delas -, porque me rio e não sinto qualquer revolta por isso quando vejo este casamento homossexual cigano... Será que a senhora prof ainda tem tempo e disposição para o riso? Será que após esta explicação a senhora prof continuará revoltada? Querem respeitar os ciganos? Vejam-se gregos:

O ver-se grego não deve provir de se tornar grego no sentido de se ver como natural ou habitante da Grécia. No entanto, o mistério em que sempre se tem envolvido o que é grego, por menos acessível ao comum das gentes, decerto influiu no facto de a palavra grego se haver aplicado aos ciganos, cuja origem tanto mistério encobre, mas que se julgaram oriundos do antigo império grego. Escrevi, por isso, no Glossário Crítico de Dificuldades que ver-se grego deve relacionar-se com os ciganos: "Supostos estes oriundos do antigo império grego, aos ciganos se chamou gregos. A sua vida cheia de dificuldades, perigos, aventuras, perseguições, deu lugar a que se veja grego quem sofra percalços ou se veja neles. Por um lado, a linguagem dos ciganos, o protótipo ininteligível, por outro lado,a confusão de ciganos com gregos da Ásia Menor e a sua vida cheia de peripécias, de dificuldades do ciganear, tudo isto misturado é o que dará a origem do ver-se grego.

27.12.08

APRENDER A CONTAR #57

PRELÚDIO PARA SEXO E SONHO

A virilha verde congestionou-me o sonho. Relentado a par de mim e a voz, o eco. Há corpos de homens, rígidos, para deitar abaixo com uma bola vermelha, corpos, subitamente, numa barraca de feira.
A virilha verde retesou-me o sonho.
Porquanto o horizonte é uma centopeia grande, o mar é uma centopeia grande. Nós uma centopeia emborcada, a arranhar o ar.
Abano-me com um leque de papel amarrotado. Saturo-me de coisas familiares. No outono, as flores apócrifas, no papel da parede, deixarão zumbir corolas.
A virilha verde sugou-me o sonho.
O sexo da 2.ª pessoa induvidada. A alma da 2.ª pessoa ambígua é o aberto entre mim e o sangue.
Sangra um lábio ilúcido arpoado no meu. E o silêncio espásmico.
A virilha verde amorteceu no sonho.
Será urgente talhar uma Paz apodrecida, a chicote, pelas manhãs nervadas?
Dormiste com as chaminés a fumegar.
Dormi a dar à luz.
Para se defender de nós, a noite estendeu o escudo. Há uma lua apedrejada de mitos e estrelas.
A virilha verde morreu.

Vigília.

Luiza Neto Jorge, Poesia, Assírio & Alvim, p. 30, Dezembro de 1993.
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26.12.08

SINOS DE ALEGRIA

Passo sempre o Natal em família, reunião reforçada com o aparecimento dos mais pequenos. Bebemos, comemos, falamos, cantamos, abrimos presentes, jogamos uma cartada. Devo dizer que lá em casa nunca se come bacalhau nem peru pelo Natal. Este ano houve uma entrada de camarões fritos, seguidos de sapateiras e lombo de porco. Das sobremesas, além dos tradicionais fritos, há a destacar um pudim molotov, um pão-de-ló, o bolo de noz, a tarte de laranja, um semi-frio caseiro de frutos silvestres e a salada de frutas. Tudo regado com branco de Bucelas e tinto alentejano, ficando a aguardente de medronho e o moscatel de Setúbal reservados para o café. Após o jantar, os putos abrem os presentes. Depois calha a vez aos adultos. Este Natal o Noel foi generoso: duas garrafas de tinto alentejano, um livro de Ramon Llull, o último tomo dos Sigur Rós, um pijama com o pato Donald, uma caixinha de DVDs da série ‘Allo ‘Allo!, um aparelho em forma de aranha para enfiar na cabeça e pôr a vibrar (dizem que destressa), um agasalho, bombons, paz & sossego. Uma única razão me traz aqui a partilhar estas coisas com os leitores. Essa razão chama-se: tempos de crise. Para aí desde o último governo do “é só fazer as contas” que ando a ouvir falar em tempos de crise. Pessoalmente, confesso que nunca vivi tempo que não fosse de crise. Com o 11 de Setembro foi a crise de civilizações, com os escândalos Moderna e Casa Pia foi a crise de valores, agora é a crise económica, isto para não falar da eterna crise do futebol português, da crise na educação, etc. A única porra que ainda não foi atingida pela crise é mesmo a crise. Anseio por uma crise da crise. A verdade é que a crise está aí, está na cabeça das pessoas, está na ponta da língua dos fazedores de opinião e na ponta dos dedos dos escribas, está nesta tendência fadista portuguesa, está nos temores com que os poderosos manipulam os dominados, está nas grandes mentiras que têm servido para engordar os pobres milionários. Morreu Harold Pinter, o Nobel que, sentado numa cadeira de rodas, não prescindiu do tempo de antena que lhe foi concedido para pôr a crise em dia. Chamou mentirosos aos senhores da guerra e está visto que tinha toda a razão. É a esses senhores que devemos a crise, a essa cambada de aldrabões que, apoiados em CIAs, Mossades, MI5s e o caralho, brinca com a vida das populações como se estivesse a construir um presépio de soldadinhos de chumbo. A crise mora na Serra Leoa, na Etiópia, no Ruanda, no Burkina Faso, nesses países todos onde à custa da exploração de escravos e da usurpação de matérias primas nós erigimos a filha da puta da nossa crisesinha. Nesta época de reflexão, penso nos jovens gregos e nos jovens parisienses e noutros jovens que andam a atirar pedras à crise. Também nós podíamos atirar pedras à crise, não fôssemos um povo de brandos costumes. Pelo menos que atirássemos sapatos à crise. Sabem por que não o fazemos? Porque ainda não sentimos crise nenhuma, porque ainda podemos passar natais rigorosamente burgueses, como o meu, ou em redor de uma fogueira a assar sardinhas e febras ou debaixo de uma tenda servidos pelo Banco Alimentar. Porque a crise ainda não passou de uma mera palavra que serve para tudo. Porque ainda há crédito para árvores de Natal, presépios e presentes inúteis. As pedras? Continuarão apenas a servir para darmos cabo das solas dos nossos amansados e recheados sapatinhos.

25.12.08

O CIGANO DO ANO

APRENDER A CONTAR #56

DIÁLOGO COM UM FOGÃO

Apresentou-se-me: gordo, largo, a grande bocarra cheia de fogo.
«O meu nome e Franklin», disse ele.
«És então Benjamin Franklin?», perguntei.
«Não, Franklin somente. Ou Francolino. Sou um fogão italiano, uma invenção excelente. É certo que não aqueço lá muito bem...»
«Sim», repliquei, «isso já é do meu conhecimento. Todos os fogões com belos nomes são invenções excelentes, mas aquecem medianamente. Gosto muito deles; são dignos de admiração. Mas diz lá, Franklin, como sucede isso que um fogão italiano tem um nome americano? Não é estranho?»
«Estranho? Não, esta é uma das leis secretas, sabes? Uma lei secreta das interrelações e das complementaridades, a natureza está repleta de leis semelhantes. Os povos cobardes têm canções nas quais a coragem é exaltada. Os povos desprovidos de amor têm peças de teatro nas quais é exaltado o amor. E assim se passa igualmente connosco, os fogões. Geralmente, um fogão italiano tem um nome americano, tal como um fogão alemão tem, usualmente, um nome grego. São alemães, e crê no que te digo, em nada aquecem melhor que nós, mas chamam-se Heureca, ou Fénix, ou Despedida de Heitor. Liberta grandes recordações. E, assim, também eu me chamo Franklin. Sou um fogão, mas poderia de igual modo ser um homem de Estado. Tenho uma grande boca, gasto muito, aqueço pouco, cuspo fumo por um tubo, tenho um bom nome, e liberto grandes recordações. É o que sucede comigo.»
«Seguramente», disse eu, «guardo grande respeito por vossa excelência. E pois que é um fogão italiano, certamente se poderão igualmente, assar castanhas dentro de si, não é verdade?»
«Isso é possível, na verdade. É um passatempo. Há muito quem goste disso. Outros também fazem versos ou jogam xadrez. Decerto se poderão assar castanhas no meu interior, por que não? Na verdade, queimam-se, no entanto o passatempo lá está. Os homens gostam de fazer passar o tempo, e eu sou uma obra humana. De facto, cumprimos a nossa obrigação, nós, os monumentos, nem mais, nem menos.»
«Um momento! “Monumentos”, é como disse? Considera-se um monumento?»
«Mas, certamente. Todos nós somos monumentos. Nós, os produtos de indústria, somos todos monumentos a uma qualidade ou uma virtude humana, uma qualidade rara na natureza, e que somente nos homens se encontra em elevado grau.»
«E que qualidade é essa, se faz favor?»
«O sentido para o inoportuno. Eu, juntamente com muitos outros, sou um monumento a este sentido. Chamo-me Franklin, sou um fogão, tenho uma enorme boca que devora a madeira, e um grande tubo através do qual o calor encontra a via mais rápida para o exterior. Tenho ainda ornamentos, e dois obturadores que se podem abrir e fechar. Também isto é um belo passatempo. Pode-se brincar com eles como com uma flauta.»
«Estou encantado, Franklin. Encontro-me ante o fogão mais inteligente que jamais vi. Mas, afinal, como é: de facto, é um fogão, ou um monumento?»
«Quantas perguntas! Não é do seu conhecimento que o homem é o único ser que associa às coisas um “sentido”? Para toda a natureza, o carvalho é o carvalho, o vento é o vento, o fogo é o fogo. Mas, para os homens, tudo se passa de forma diferente, tudo está cheio de sentidos, e de interrelações! Tudo para ele se torna sagrado, tudo é simbólico. Um assassínio é um acto heróico, uma epidemia o dedo de Deus, uma guerra é evolução. Como poderia, então, um fogão ser somente um fogão?! Não, ele é igualmente símbolo, é monumento, é um proclamador. E é por isto que é amado, e lhe tributam respeito. É esta a razão por que possui ornamentos e obturadores. É esta a razão por que ele põe, no pouco que aquece, a sua única finalidade. Esta a razão por que se chama Franklin.»

(1919)

Hermann Hesse, Contos Maravilhosos, trad. Isabel de Almeida e Sousa, Difel, pp. 213-215, 1990.

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24.12.08

SINOS E BADALOS


Sinos e badalos de alegria a todos os leitores e leitoras desta casa insone. Beijinhos muito especiais, eles sabem porquê, à Kasca de Noz, ao Coisas de Outros Mundos e família, ao indígena, ao poeta da rua, à poeta ciciante, à Inês, ao Victor, à malta da Big Ode e ao VV das cabeças com tronco e membros. Para a Maria João, para o Costa e para o Jorge Aguiar Oliveira, a promessa de por aqui continuar até que a voz me doa. Espero que em boa companhia.

23.12.08

Música nesta quadra #5


Estou quase a partir de Lisboa em direcção às terras do além, onde passarei uns dias com a família, vou entusiasmada porque já não estou com os meus sobrinhos todos desde as férias grandes. Nesta quadra vou encontrar-me também com os meus pais, todos os meus irmãos, respectivos, respectivas, e na noite de 24 vou a casa dos meus avós maternos, em Cabeção, onde estarei também os meus tios, primos e filhos, um mar de pessoas queridas que se reencontram nesta quadra. Este ano não chove, por isso já coloquei agasalhos na mala, tenho de estar preparada para o frio. Antes de partir, deixo-vos esta prenda, Un soir de neige composta por Francis Poulenc entre 24 e 26 de Dezembro de 1944, um íntimo coro invernal, escrito em tempo de guerra, onde a neve se transforma em símbolo de resistência, força humana e fé numa vitória final. Deixo-vos também com os poemas desta música, de Paul Eluard:

De grandes cuillers de neige

De grandes cuillers de neige
Ramassent nos pieds glacés
Et d’une dure parole
Nous heurtons l’hiver têtu
Chaque arbe a sa place sur terre
Chaque roc son poids sur terre
Chaque ruisseau son eau vive
Nous nous n’avons pas de feu.

La bonne neige

La bonne neige le ciel noir
Les branches mortes la détresse
De la forêt pleine de pièges
Honte à la bêste pourchassée
La fluite en flèche dans le coeur
Les traces dune proie atroce
Hardi au loup et c’est toujours
La plus beau loup et c’est toujoursa
Le dernier vivant que menace
La masse absolue de la mort.

Bois meurtri

Bois meurtri, bois perdu d’un voyage en hiver
Navire où la neige prend pied
Bois d’asile, bois mort où sans espoir je rêve
De la mers aux miroirs crevés
Un grand moment d’eau froide a saisé les noyés
La foule de mon corps en souffre
Je máffaiblis je me disperse
J’avoue ma vie jávoue ma mort
J’avoue autrui.

La nuit le froid la solitude

La nuit le froid la solitude
On m’enferma soigneusement
Mais les branches cherchaient
Leur voie dans la prison
Autour de moi l’herbe trouva le ciel
On verrouilla le ciel ma prison s’écroula
Le froid vivant le froid brûlant
M’eut bien en main.


Saúde e Bom Natal
Maria João

MÚSICA NESTA TERÇA


22.12.08

INSTINTO

O homem foi-se construindo através de um controle da brutalidade. À medida que se afastava da sua animalidade natural, o homem tornou-se num ser parte integrante da natureza mas com capacidades de autodomínio dessa sua própria natureza. O instinto animalesco está lá, desperta aos mais ínfimos pormenores. Mas com o tempo, ao instinto animalesco acoplou-se a capacidade manipuladora da razão. É esse cocktail que transforma o homem no bicho mais perigoso da natureza. Nele, a brutalidade vive disfarçada por detrás de uma razoabilidade que é tão frágil quanto uma peça de cristal.

EM COMPENSAÇÃO

Para compensar as estórias desbragadas do livreiro neófito, este comentário largado no post Música nesta quadra #4:

Gostei de conhecê-lo, não fazia ideia da figura real de quem lia aqui. Afinal Vc tinha razão. É AriÒsto que se pronuncia, como Agosto, rostro, etc. E andei eu a estudar italiano (há uma porção de anos) e o leia e traduza. Bom Natal, logo que esqueça aquele em que está.

Se bem me lembro, este cliente levou um exemplar do Orlando Furioso, de Ludovico Ariosto, na excelente edição da Cavalo de Ferro. E pediu a revista Criatura, que infelizmente não temos. É a segunda vez que isto me acontece, clientes deixarem comentários no blog. A primeira vez aconteceu com um anónimo:

que curioso. andava eu no google a pesquisar por um poema de miguel manso quando sou conduzida a este blog, aparentemente de um livreiro da bertrand onde eu estive no sábado a procurar um livro (embora sem grande sucesso..) achei por graça partilhar este fruto do acaso :) boas leituras

Quando era professor, alguns alunos também vinham aqui deixar comentário. E houve o caso de um colega de trabalho, a propósito de uma discussão sobre praxes. Nunca falámos sobre esses assuntos, digamos assim, fora do espaço virtual. Este é um fenómeno curioso, porque na vida real as pessoas não se denunciam. A minha dúvida é: o que leva alguém a num blog dizer que esteve connosco fisicamente e fisicamente omitir que costuma estar connosco no blog? Enquanto vou pensar no assunto, passarei a ler o Mudanças & Cia. Levou o Ariosto, ganhou um leitor.

21.12.08

BOAS IDEIAS

Acabei agora mesmo de ver um vídeo onde o Fernando Esteves Pinto, editor da 4 Águas e escritor de pena rija, avança com uma ideia que me pareceu genial: os poetas que queiram ser editados pela 4 Águas deverão ajudar o sócio do Fernando Esteves Pinto na apanha da alfarroba. Julgo a ideia genial e bastante pertinente, desconfio apenas que não haja alfarroba que chegue para tanto poeta a pretender ser editado. Com os esforços direccionados nessa preocupação, informo o Fernando de que facilmente lhe arranjarei algumas propriedades cá em cima onde os eventuais poetas interessados poderão apanhar tomate, pêra rocha, batata e suculentos cachos de uvas para o bom vinho da região.

Música nesta quadra #4



Um dos aspectos positivos da época em que vivemos, é ser possível escutarmos todo o tipo de música, por causa das gravações – podemos também ouvir música de diferentes épocas e não apenas a música composta no nosso tempo, ao contrário do que acontecia no passado. Este aspecto tem no entanto outra face da moeda – porque nos esquecemos da magia da música interpretada ao vivo, desse momento único e irrepetível que é um concerto – algo que as gravações em vídeo também registam. Por isso, escolhi uma peça de um dos meus compositores actuais favoritos: Arvo Pärt, que se tem inspirado na polifonia, na música erudita do passado, também no serialismo e minimalismo de um passado mais recente, para criar algo muito peculiar, que só poderia ser feito nos nossos dias. Nascido na Estónia em 1935, tem composto música de câmara vocal e instrumental com um estilo muito próprio, da qual escolhi Silouans Songs, na excelente interpretação desta orquestra feminina; não é uma peça de Natal, mas este som do norte planeta, onde o silêncio, as suspensões tem tanta importância quanto o som na composição musical, enquadra-se perfeitamente nesta quadra invernal.

Bom fim-de-semana
Maria João

20.12.08

Assalto ao Tesouro de Madame MM

Entrar em casa da Madame ostentando uma mentira ao peito em lugar dum broche e, dia após dia, discretamente, roubar-lhe pedaços dos bens que são parte do seu tesouro sem ela dar conta, até ao dia em que foi alertada para o sucedido. MM está permanentemente mudando os objectos de lugar como um deus controlando as marionetas. Os bibelôs chegam a habitar dois ou três lugares durante um dia, deteriorando-se entre raios de luz e pós. Neste lugar, tudo corre permanentemente atrás da velocidade da luz, como se um medo de as sombras se apagarem crescesse entre os olhares das quatro gatas – três para ser preciso – amparando o choque da Madame ao saber pela veterinária que afinal a Ginga tinha testículos, logo era um Gingo, mas não. A bicha ficou Aicha Ginga.

Nenhum cenário foi montado e nenhum objecto foi ajeitado por mim, excepto a polaroid 35. Entrar em casa, olhar e gamar instantes de vida curta. Se hoje voltasse a assaltar o tesouro já não conseguiria repetir a imensa maioria das polaroids sacadas.

A Madame é como se fosse uma bateria com duas mamas que se carrega com os raios de luz que lhe banham todos os dias a varanda de sua casa, que é um dos três melhores miradouros sobre Lisboa que conheço.

A MM tem um coração grande mas, penso que ela acha não o ser suficientemente. Então – como se aplicasse acrescentos à bondade – vai adquirindo milhentos coraçõezinhos em metal, esponja, em vidro, madeiras ou pedras, espalhando-os por toda a casa. Dentro do seu coração habita uma ilha de luz onde se pode avistar a sua menina brincando nas areias cristalinas duma praia sem fim.

Um dia tudo irá desaparecer. A Madame, a filha, as gatas, os objectos, a casa, as polaroids e o larápio vulto que as roubou. Por ora: três agradecimentos finais. À Madame MM por fazer flash comigo no desejo louco de até querermos amar a solidão. Ao Henrique Fialho, por mais uma vez dar-me abrigo nesta casa desde 12 de Setembro até hoje. Por último, a todos os que se deram ao trabalho de expressarem opinião sobre as polaroids ao longo dos meses.

A imagem seguinte é a última. Senhoras e senhores... eis, Madame MM.


Jorge Aguiar Oliveira

ASSALTO AO TESOURO DE MADAME MM /71


Jorge Aguiar Oliveira

EXPLICAÇÃO ÀS PASSAROLAS, A ÚLTIMA

A bosta dos links, mais uma vez a bosta dos links. Desta feita é o Anastácio que se constata. Nunca ninguém se queixa, todos constatam. Acontece que já expliquei milhentas vezes que ando sempre a mexer nos links. E já expliquei diversas vezes porquê. Da última vez, apaguei-os todos. Pensei que seria a melhor opção. Vamos lá a ser honestos. O Insónia é muito linkado, gesto que agradeço linkando quem o linka (quando reparo no gesto). Por fazermos um link de um blog no nosso blog não quer dizer que o leiamos. Não teríamos tempo para fazer mais nada senão ler blogs. Há aqueles blogs que não nos linkam e nós linkamos porque os lemos, há os que nós linkamos por simpatia mas raramente visitamos, sobretudo porque não temos tempo par ler tudo. Tenho uma vida para lá dos blogs. 8 horas de trabalho diário, mais alguma coisa. Trabalho numa livraria, escrevo artigos para uma revista mensal com a regularidade que me é possível e desejável, respondo a várias solicitações, como a do prefácio que o Anastácio anuncia no post acima linkado, recebo dezenas de mails todos os dias sobre todos os assuntos e mais alguma coisa, desde gente que me pede opiniões sobre o que escreve a leitores convidando-me para outras aventuras, umas que se concretizam, outras nem por isso, convites para isto e para aquilo, gente que me pede um endereço postal para me oferecer livros, etc. Tenho tido sorte, a simpatia das pessoas, o reconhecimento, vai-me massajando o ego. Um exemplo disso é este post. Há ainda as polémicas, os insultos, os elogios. Gente que me escreve com intrigas, pedidos de explicações sobre coisas com as quais nada tenho/tive que ver, gente que me escreve explicando-se quando eu não pedi explicações algumas… Nestes anos de blog julgo que já me aconteceu de tudo um pouco. Não me queixo, constato. E há a vida para lá dos blogs. Há duas filhas, uma mulher, um cão, a família, os amigos, eu. Há o estar doente, animado e desanimado, há as viagens, os passeios, há o tempo, o nosso tempo, há as insónias, a asma, há tudo aquilo que é vida para lá desta vida virtual. Fui apanhado pelo fenómeno dos blogs. Não escolhi o que tenho vivido nos últimos anos, mas foi o buraco onde me meti voluntariamente. Há muita gente muito boa, há muita gente muito chata. Acontece que em Agosto passado pensei acabar com isto tudo. A vontade de deletar todos os blogs que tenho é uma constante, o que levou o meu editor OVNI a sugerir um backup de tudo para que nada se perdesse. Se se perdesse, acreditem, eu não sentiria a mínima tristeza. Mas parece que há quem sinta essa tristeza, pessoas entre as quais algumas que muito prezo. Ora, isto tudo para dizer que em Agosto passado apaguei os links todos e muita outra coisa. Devo dizer, por exemplo, que o Insónia poderia ter mais de 8000 posts on-line não fosse a minha mania de apagar posts antigos. Uns porque passam a livro, outros porque nunca deveriam ter existido, outros por razões como esta: no passado dia 4 recebi um mail de um tal Flávio Gonzaga Silva que dizia o seguinte: «Lamento mas a foto do Manuel João Vieira no blog que exibes tem direitos de reprodução. Foi tirada por Celso Assunção ao serviço da Cartolas' Band, no dia 4 de Maio de 2002 em Aveiro... Sugiro que disponibilizes no blog o nome do seu autor e que, já agora, informes onde a obtiveste. Desde já obrigado pela tua atenção. Flávio Silva». Eu apaguei o post. Não só porque me lembraram da existência de uma fotografia horrível do MJV no Insónia, mas porque me senti envergonhado por ter ferido os direitos autorais de um tal Celso Assunção, representado no e-mail em causa por um tal Flávio Gonzaga. Onde fui buscar a fotografia? Sei lá! À net. Este é só um exemplo do que é a vida do Insónia. Adiante. Neste momento temos 4340 posts on-line, mas a vontade de ir reduzindo, apagando, fazendo esquecer, esse desejo é irresistível. Pelo que, em breve, teremos menos. Apago, respeitando apenas os meus desejos, a minha vontade. Pudesse eu apagar partes da vida, apagaria. Não podendo, apago partes do blog. Depois de ter apagado os links todos em Agosto, quando pensava que me tinha libertado finalmente deste monstro, vi-me enredado numa teia de equívocos que não vou aqui esmiuçar por serem pessoais e fazerem parte da vida irrevelável. Voltei então a blogar e tive que refazer a coluna de links. Fi-lo de memória, indo buscar aqueles que visitava mais e os outros que ia detectando pelo site meter. A pouco e pouco a coisa foi-se recompondo. Isto tudo para explicar ao Anastácio que não foi minha intenção deitá-lo para o lixo, deixar de o ler – até porque nunca o li com a certamente devida atenção que ele merece – ou sequer despromovê-lo na magnífica coluna de links do Insónia. Ele não é o primeiro a queixar-se. Peço desculpa, a constatar-se. Nem será o último, disso tenho a certeza. Para mal dos meus pecados.

19.12.08

ASSALTO AO TESOURO DE MADAME MM /70


Jorge Aguiar Oliveira

SEBASTIÃO COME TUDO, TUDO, TUDO

Em teoria, num sistema democrático a autoridade adviria do mérito. Em Portugal sucede o contrário, o mérito advém sempre da autoridade. Mas pior ainda é a subversão do regime republicano. Pôs-se um fim à monarquia para acabar com os eleitos à nascença, com os privilegiados de sangue e os intocáveis. O resultado está à vista: a intocabilidade aristocrática estendida à burguesia instalada, ou seja, uma dúzia de famílias que, não tendo sangue azul, o têm de cor dourada. São a esfera armilar do poder nacional. O resto é paisagem.

A PENSAR NO ASSUNTO

Comentário anónimo largado no post Os Misteres do Cu:

Você diz isso porque nunca comeu um cuzinho de uma mulher gostosa, cheirosa e agradável. Minha mulher dá o cú todas as vezes que transamos e nunca peguei nenhuma infecção pois não usamos camisinha. Pense bem cara!

O MELHOR DE 2008

O melhor de 2008 seria lembrarem-me agora quais foram os melhores de 2007.

Música nesta quadra #3


Ontem tive o prazer de participar no concerto de Natal dos coros da universidade de Lisboa, que foi maravilhoso sobretudo porque o coro infantil dirigido por Érica Mandillo interpretou Lopes-Graça de um modo indescritível. Infelizmente, não tenho nenhuma gravação dos miúdos para vos mostrar, mas se alguma vez tiverem oportunidade vão ouvi-los ao vivo, o nosso compositor do séc. XX faria no dia 17 de Dezembro 102 anos e ouvi-lo vivo nas vozes destas crianças comoveu-me. Escolhi desta vez uma peça do reportório de ontem do coro de câmara onde canto, Ave Verum Corpus apenas para elementos femininos de Francis Poulenc. Nós éramos menos que este maravilhoso coro que encontrei no Youtube. É um exemplo de música sacra bem composta no séc. XX, que pode ser ouvida em qualquer altura do ano e não apenas no Natal.

Maria João

18.12.08

O QUE É A VIDA NESTE PAÍS AQUI E AGORA?


Esta será apenas a primeira de outras respostas que se anunciam a um desafio colocado pelos ilustres Manuel A. Domingos e Luís Filipe Cristóvão. Indo directamente ao assunto, julgo existirem duas formas de olhar para a vida no Portugal moderno. A primeira é a de quem olha de dentro para fora, a segunda será a de quem olhe de fora para dentro. De dentro para fora, eu diria, citando o Ruy Belo de Na Senda da Poesia, que «é realmente uma desgraça ter nascido em Portugal. Sentimo-lo quando nos nasce um filho. Parte para a vida em desvantagem». Esta desvantagem refere-se à dimensão do país, uma dimensão não necessariamente geográfica, mas cultural no sentido mais lato do termo. Podemos, obviamente, fazer algum malabarismo e compararmo-nos à imensa maioria de países no mundo que se encontram ainda pior que Portugal. Mas esse exercício não só é inútil, porque nos distrai dos nossos problemas, como acaba sendo capcioso. Devemos comparar-nos com os países da União Europeia, os de uma mesma família de que, por diversas razões, somos parte integrante. E aí a comparação deixa-nos muito desanimados. A vida neste país, assim pensada, torna-se decepcionante. Pessoalmente, julgo que o maior problema de todos, outros haverá tão ou mais importantes, resulta de um burguesismo estupidificante que ocorreu no Portugal dos últimos 30 e qualquer coisa anos - «Burgueses somos nós todos / desde pequenos» (Mário Cesariny). Isto deve-se ao facto de a clara melhoria de condições de vida não ter sido acompanhada por uma mudança de mentalidades, ou seja, o progresso económico não se viu acompanhado pelo progresso cultural. A falência da educação - também em sentido lato, pelo que não me refiro exclusivamente à falência da escola (essa há muito está falida) - é, talvez, o princípio base desta gigantesca assimetria. O que temos hoje é um país de saloios endinheirados e de outros saloios que, não sendo endinheirados, imitam como podem e sabem os primeiros. A pobreza de espírito está à vista, nota-se em gestos quotidianos muito simples, é assaz visível na febre consumista que assalta as pessoas na época que estamos a viver neste preciso momento. E note-se como tal pobreza de espírito se reflecte em comportamentos básicos, da mais elementar cidadania, olhando para a fotografia que encima este texto. Trata-se de um dispositivo para as pessoas de cadeira de rodas poderem abrir as portas de um centro comercial recentemente inaugurado em Caldas da Rainha. Foi rapidamente transformado num cinzeiro. Se pensam que apenas uma ou duas pessoas o transformaram num cinzeiro, desenganem-se. Todos os dias o dispositivo tem sido limpo, todos os dias aparece imundo de beatas e de cinza. Depois também podemos olhar para a vida no Portugal de agora pensando de fora para dentro. E aí ocorre-me uma frase do Luiz Pacheco numa carta dirigida ao António José Forte, datada de 12 de Junho de 1961: «Os saloios, como sabes, somos nós todos ― vistos de Paris». A frase não é de agora, mas, para mal dos nossos pecados, continua a fazer todo o sentido. Temos gente de muito valor em Portugal, temos gente portuguesa de imenso valor a trabalhar no estrangeiro, o país é bonito, embora o tenham destruído em grande parte nos últimos, lá está, 30 e qualquer coisa anos, temos tido políticos de merda – pensamento, talvez, tipicamente português, mas irrevogável -, temos uma culinária de excelência, boa música, bons poetas, prosadores sofríveis, 1 Prémio Nobel da Literatura, uma nação futebolística… Mas há algo que nos faz sofrer quando nos pensamos portugueses, quando temos que, diariamente, nos confrontar com as atitudes mesquinhas, incultas, estupidamente arrogantes, saloias no pior sentido do termo, medonhamente conservadoras e elitistas, com os comportamentos burgessos da imensa maioria dos portugueses. Em suma, e voltando a citar, coisa também muito portuguesa, «o povo completo será aquele que tiver reunido no seu máximo todas as qualidades e todos os defeitos. Coragem, Portugueses, só vos faltam as qualidades» (Almada -Negreiros no agora de 1917).

APRENDER A CONTAR #55

A ROSA DE SEDA
(FÁBULA)

Num fabulário ainda por encontrar será um dia lida esta fábula:
A uma bordadora dum país longínquo foi encomendado pela sua rainha que bordasse, sobre seda ou cetim, entre folhas, uma rosa branca. A bordadora, como era muito jovem, foi procurar por toda a parte aquela rosa branca perfeitíssima, e cuja semelhança bordasse a sua. Mas sucedia que umas rosas eram menos belas do que lhe convinha, e que outras não eram brancas como deviam ser. Gastou dias sobre dias, chorosas horas, buscando a rosa que imitasse com seda, e, como nos países longínquos nunca deixa de haver pena de morte, ela sabia bem que, pelas leis dos contos como este, não podiam deixar de a matar se ela não bordasse a rosa branca.
Por fim, não tendo melhor remédio, bordou de memória a rosa que lhe haviam exigido. Depois de a bordar foi compará-la com as rosas brancas que existem realmente nas roseiras. Sucedeu que todas as rosas brancas se pareciam exactamente com a rosa que ela bordara, que cada uma delas era exactamente aquela.
Ela levou o trabalho ao palácio e é de supor que casasse com o príncipe.
No fabulário, onde vem, esta fábula não traz moralidade. Mesmo porque, na idade de ouro, as fábulas não tinham moralidade nenhuma.

Fernando Pessoa (1888-1935), in Contos, Fábulas & outras ficções, org. Zetho Cunha Gonçalves, p. 41, Bonecos Rebeldes, Novembro de 2008.

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Música nesta quadra #2




O que existe de positivo nesta quadra são as crianças, o resto é treta, se bem que as crianças são sempre o melhor do mundo, não é por acaso que popularmente se afirma que Natal pode ser todos os dias. Assim, escolhi duas peças do Eurico Carrapatoso, do delicioso O meu poemário infantil - tive o privilégio de assistir à estreia na Aula Magna em Dezembro de 2005, onde a Orquestra Metropolitana de Lisboa e a voz de João Rodrigues ao vivo foram brilhantes. Também não são músicas de Natal, mas as crianças grandes e pequenas saberão perdoar-me mais uma vez por isso. Gosto especialmente da Triste traça, devido à simbiose entre poema – música, recomendável a todo os grandes e pequenos dados às tretas, perdão, letras. Quando escutei pela primeira vez este delicioso Poemário, de imediato lembrei-me dos filmes da Disney, em todo ele está também presente o som dos musicais clássicos de Hollywood para crianças, no bom sentido, porque anima de um modo peculiar os excelentes poemas em bom português de Violeta Figueiredo.

Maria João

17.12.08

ASSALTO AO TESOURO DE MADAME MM /69


Jorge Aguiar Oliveira

Música para esta quadra #1


E se o Natal fosse apenas boa música em vez de promoções, pedidos hipócritas, chamadas de valor acrescentado, publicidade de merda, a TV com histórias de desgraçadinhos, a Popota, cartões, desvario de compras, centros comerciais cheios de gente, o vencimento do governador de Portugal, chatos e chatisses de toda a espécie? Se fosse parar com tudo isto para ouvir boa música? Acho que me convertia, teria fé não sei bem no quê, mas sinto fé quando oiço boa música, seja ela sacra ou profana. Inicio este ciclo com Esti Dal, canção popular húngara harmonizada pelo compositor Zoltán Kodaly (1882 - 1967), que com Bela Bartók, foi responsável pelo levantamento da música popular na Hungria e Roménia, no início do séc. XX, fundando a etnomusicologia actual. Trata-se do canto nocturno de um soldado, que pede protecção divina ao adormecer mais uma noite no estrangeiro, encontrei aqui a tradução do poema húngaro para o inglês:

Evening song

Evening darkness overtook me near the woods;
I have put my coat under my head (i.e. as a pillow),
I have put my hands together
To pray to the Lord, like this:

Oh, my Lord, give me a place to sleep,
I am weary with wandering,
With walking around and hiding,
With living on foreign land.

May Lord give me a good night,
May he send me a holy angel,
May he encourage our hearts' dreams,
May he give us a good night.

Apesar de não ser uma música de Natal, enquadra-se bem nesta quadra.

Maria João

16.12.08

ASSALTO AO TESOURO DE MADAME MM /68


Jorge Aguiar Oliveira

15.12.08

ASSALTO AO TESOURO DE MADAME MM /67


Jorge Aguiar Oliveira

13.12.08

ASSALTO AO TESOURO DE MADAME MM /66


Jorge Aguiar Oliveira

12.12.08

ASSALTO AO TESOURO DE MADAME MM /65


Jorge Aguiar Oliveira

10.12.08

ASSALTO AO TESOURO DE MADAME MM /64


Jorge Aguiar Oliveira

9.12.08

ASSALTO AO TESOURO DE MADAME MM /63


Jorge Aguiar Oliveira

Fragmento #70 - Menu

Reuni-me em minha casa com a equipa Big Ode, para reflectirmos sobre o que temos feito, uma espécie de balanço de dois anos de actividade, de como já conseguimos fazer omeletas, mesmo sem ovos e activar a criatividade para o futuro. Consciencializámo-nos de que somos um grupo de amigos reunidos em torno de um delírio nada rentável, mas do qual temos desfrutado da melhor forma possível, aprendendo muito, cada passo foi sempre um novo espaço. Preparei para o jantar: uma deliciosa sopa de legumes, bifes de atum (em cebolada), esparregado, salada de tomate com pimento assado, cortado em tiras e temperado com azeite das terras do além Tejo (Enchoé), vinagre balsâmico e orégãos; havia ainda umas supostas batatas cozidas, que iriam passar pelo dito azeite frito com alho picado, para finalmente temperá-las com coentros; distrai-me e as batatas cozeram demais, ao colocá-las no azeite, desfizeram-se, resultando um excelente puré. Não vos dou mais pormenores sobre este puré criado a partir de um erro, por causa dele estou a pensar dedicar-me de vez à culinária; tudo o que tem textura de papa deixa as pessoas felizes porque lhes recorda a infância; e a culinária é a arte maior, muito mais abrangente que as outras, porque engloba todos os sentidos, cozinhar com arte e degustar uma boa refeição é uma elevação do instinto de sobrevivência. Acho também que será a única arte com a qual irei ganhar dinheiro, cheguei a essa conclusão quando vi a Sara a servir o menu nos pratos de forma a ficarem geometricamente apetecíveis também ao olhar e começou o ritmo dos talheres no prato, música que levou ao nosso interior o menu partilhado com gosto – o estupor do Kant foi lembrar-se deste termo na analítica do belo, o gosto, juízo de valor que estava na língua, sentido baixo a ser elevado com a nobre visão e audição. Também poderei criar menus de língua, de vaca por exemplo, com muito gosto, Rossini iria entender e apreciar de certeza.

Maria João

5.12.08

ASSALTO AO TESOURO DE MADAME MM /62


Jorge Aguiar Oliveira

APRENDER A CONTAR #54

O MONSTRO DE TRAPOS

Deixemos de parte os pormenores de como começara a guardar restos de pano. Talvez fosse pobre, e os restos as únicas coisas no orfanato que podia considerar suas. Talvez fosse rica e tivesse começado a juntá-los quando, a estudar num colégio privado para as elites, manchou um vestido preferido com Cabernet e recortou quadrados do tecido antes de deitar fora o resto. Não interessa quem ela era ao certo, nem como tinha começado.
O que interessa é o seguinte: Adorava colchas. Queria fazer uma.
Guardava os pedaços de tecido num armário. Ia-os coleccionando, quem sabe se pedindo e poupando, ou talvez comprando o que lhe chamasse a atenção.
Acumulou tecido. Tinha em consideração como cada cor ou desenho combinava com outros. Observou as colchas acabadas em casa de amigos e nas paredes de museus. Cada vez mais, os seus pensamentos eram dedicados às colchas que iria fazer.
Mas sempre que se preparava para coser as suas ideias, acontecia qualquer coisa. Tinha uma aventura amorosa, ou um bebé, ou um divórcio, ou outro bebé, ou um emprego, ou uma promoção, ou a morte de um familiar, ou um problema com a bebida, ou um acidente de automóvel, ou uma depressão suicida. Sempre que se preparava para começar a sua primeira colcha, a vida metia-se-lhe pela frente. Ou então apoiava a mão na porta do armário e sentia-se muito cansada, demasiado cansada para começar algo tão complicado como uma colcha.
No meio de tudo isto, envelheceu. E no meio de envelhecer, morreu.
No dia em que morreu, abriu-se a porta do armário. O monte de trapos caiu e espalhou-se pelo corredor. Abriu-se a porta de casa. Os trapos saíram à rua.
Como? É possível que se tenham arrastado ou deslizado pelo chão. Ninguém viu o monte mexer-se. Ninguém vê. Mas ele mexe-se. Aparece num sítio e depois no outro.
Um dia, o monte de trapos está no passeio junto à estação dos autocarros. Um homem acabado de sair da viatura vê o monte, põe-se a pensar, e entra na estação para comprar um bilhete para a outra cidade mais a norte.
Mais tarde, uma mãe que observa o filho a brincar no parque julga ver qualquer coisa nos arbustos. Aproxima-se para ver melhor. Não passa de um monte de trapos sujos e esfarrapados. Ainda assim, pega no bebé ao colo e afasta-se a correr.
No deserto, um artista pinta uma paisagem contendo o monstro de trapos. O monstro é escuro, indistinto e bem podia ser outro dos pedregulhos. Mas não é. O quadro não vende. Mesmo depois de o artista pintar por cima do monte de trapos para aí colocar um pedregulho ― definitivamente um pedregulho ― as pessoas olham para o quadro e pressentem que algures ali se esconde algo terrível.

Bruce Holland Rogers (1958), in Pequenos Mistérios, trad. Luís Rodrigues, pp. 84-85, Livros de Areia, Novembro de 2007.

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