29.11.07

«UM DOS MAIS PRESTIGIADOS BLOGGERS NACIONAIS»*

O prestígio é um substantivo levado da breca. Vem assim definido no dicionário: ilusão dos sentidos produzida por artes mágicas. Em sentido figurado, pode também ser a influência comparada à da magia. Só neste sentido o prestígio concorda com o acto de escrever em e para weblogs, pois de outra forma a bota deixa de bater com a perdigota (não estou certo do que queira afirmar com isto, mas julgo ser isto o que pretendo dizer). Ser blogger (propriedade estranha à grande e sóbria maioria dos indivíduos), ainda para mais nacional, é coisa que, de facto, apenas prestigia por artes mágicas. Daí que o prestígio, em termos blogosféricos falados, não passe de uma simples ilusão dos sentidos produzida por artes mágicas, a mesma ilusão que nos leva a acreditar vivermos num país onde a palavra possa, de alguma forma, exercer sobre quem a lê o fascínio de um simples truque levado a cabo pelo mágico Luís de Matos. Mas tem razão, pois então, quem assim fala de prestigiados bloggers nacionais. Para quem não saiba, a etimologia do termo não engana: do latim praestigiosu, que significa charlatanice. Talvez inadvertidamente, não admira que vivamos num país onde, por tudo e por quase nada, a cada esquina da urbe desabrochem aos molhos prestigiosas entidades.

*Título surripiado
aqui.

BRINDEMOS


Não há fome que não dê em fartura, dizia o povo viciado de esperança. Mas, por este andar, não haverá fome que não dê em mais alguns milhões, para juntar aos 55, que sobrevivem abaixo da linha da pobreza. É verdade que a linha da pobreza não é a mesma para todos. Há gente que cose as bainhas da fome com linhas imperceptíveis, outras, mais exigentes, optam pelo tricotado a duas agulhas. O que se torna de todo imperceptível é que, insensíveis à fome, os nossos patrões da miséria ainda se dêem ao desplante de brindar, em taça de cristal, ao que apenas eles saberão merecer tal brinde. Mais cuidado com o respeito pelos direitos humanos, não será certamente. Não houve tempo. Isso mesmo, entre tanto tema urgente, não houve tempo para discutir a questão dos direitos humanos. Não é difícil compreender que assim seja, pois que importância poderá ter a questão dos direitos humanos entre uma caterva de animais? Se a gente não os respeita, serão eles, lá na indolência da sua bestialidade, a respeitarem-nos a nós? Não creio. O que importa é declarar conjuntamente interesses estratégicos, o défice comercial, o sucesso do banquete. Humanos? Direitos? Meus amigos, isso são chichas para canhão. Vamos mas é pôr as mãos ao trabalho, que é como quem diz pôr as manápulas sobre quem trabalha. Pouco barulho, ó vagabundos deste mundo, para quem o tempo é de fartura e a fartura não vicia. Brindemos pois ao sucesso de quem nos manieta, isto a vida não está para brincadeiras. Brindemos a Pequim e a Bruxelas, brindemos à brucelose, à ASAE, ao H5N1. Brindemos ao Natal que se avizinha e adivinha repleto de tralha made in China, brindemos às mãozinhas frágeis de quem manufactura a tralha, brindemos aos dedos de quem costura as dobras da nossa alegria com linhas tão dignas de serem brindáveis.

CARTAGO

Lacraus de guaita sob pedras soltas
Marcadas em mapas de Leipzig, e carros eléctricos
Correm frívolos meandros sobre ossos deixados;
Pó eterno guia portalós ensombrados

À púnica necrofilia revelada
Em tangentes sem tempo, vistas das torres altas
De uma jovem catedral, basílicas rachadas
Pela longa competição das horas e do tempo

De cada ruína. A sombra de Cristo
E de Amílcar e dos recentes mortos
Apoiam o velho argumento: que os caprichos são marcados
Pela risada eterna do céu. Os lábios

Sangrantes desta aldeia esboroante, com o grito
De crianças mendigas, provam que pedra e lacrau mentem.

Tradução de Manuel de Seabra.

Allan Sillitoe

Allan Sillitoe nasceu no dia 4 de Março de 1928 em Nottingham. Trabalhou como operário, juntou-se à Royal Air Force em 1946, tendo sido destacado para cumprir serviço na Malásia, onde contraiu tuberculose. Começou a escrever durante o internamento, tendo depois vivido em França e Espanha. Foi aí que redigiu o seu primeiro romance: Saturday Night and Sunday Morning (1958). Autor de uma vasta obra ficcional, afirmou-se como poeta a partir da publicação de The Rats and Other Poems (1960).

28.11.07

REVISTA BIG ODE Nº3




FUSÍVEL QUEIMADO, JANTAR ELEGANTE

1. Os corpos sólidos não se fundem, mas o pensamento é um corpo gasoso. Dois pensamentos fundem-se com muito entusiasmo se os braços e pernas não se tocam. Aliás, se houver braços e pernas muito próximos pode bem acontecer que estejas perto da pessoa que amas. Neste caso o pensamento atrapalha, porque os corpos gasosos têm o costume de se afastarem de nós pelas frinchas da janela. Em caso de emergência o teu corpo líquido costuma ter razão: um líquido procura o animal que se assemelha e dissolves-te na tarde, que nunca teve corpo.

2. O atletismo de competição só é praticável por não haver atletas com pernas de cinco metros de altura. A possibilidade de um participante vencer a corrida com meia dúzia de passos não agrada ao público, que gosta de sofrer até ao fim. Se tiveres um coração grande demais a outra pessoa (aquela em quem começas a pensar muitas vezes) pensa que não vai conseguir recolher o sangue todo que esse coração enorme bombeia e, mesmo que pense em ti muitas vezes, recua. Um coração enorme é uma bomba de felicidade com pernas de cinco metros de altura a correr por cima do teu coraçãozinho assustado.

3. Se há um que funde e outro que quer ser fundido, o melhor é esquecermos a excelente literatura.

in Revista Big Ode Nº 3



Rui Costa

27.11.07

«ESCRAVATURA LEGAL E ADOCICADA»*

A minha mãezinha bem me avisa, nada se faz sem trabalho, filho, e o dinheiro faz muita falta, ninguém vive sem dinheiro. Não é preciso ir à Wikipédia para saber que antes do dinheiro já havia o homem, que antes do homem havia outra coisa qualquer que agora não importa, que antes dessa outra coisa qualquer outra coisa haveria, o que, feitas as contas, nos permite concluir ser muito mais vasta a história do mundo sem dinheiro do que a história do mundo com dinheiro. Muitos homens sobreviveram sem dinheiro para que aqui chegássemos. Se aqui chegámos, é também porque sobrevivemos à custa de muitos homens. Muitos deles trocados por dinheiro. Houve um tempo em que os homens se tratavam como animais, vendiam-se uns aos outros em mercados do género do mercado de Santana. Agora é tudo bem diferente, valha-nos isso. Agora os homens já não se vendem uns aos outros, apenas se compram. Essa diferença é absolutamente determinante para que constatemos a melhoria geral da humanidade, a disseminação dos valores humanos, o respeito pelo outro, pela diferença, a questão da tolerância. A tolerância, a bendita tolerância, é o valor supremo nesta era de capitalismo globalizado. Em favor da tolerância, temos que compreender e respeitar os homens que se compram uns aos outros. É a tolerância que nos obriga, por imperativo moral, a aceitar que o trabalho pago seja pago como se o não fosse, pois o desemprego é intolerável, mais vale estar com o que fazer do que estar sem fazer nada, mesmo que ter muito que fazer seja tão rentável, por vezes menos, que fazer absolutamente nada. Salvas pois à tolerância e ao mundo do trabalho nestes tempos de luta contra os privilégios. À minha mãezinha ainda vou dizendo que o melhor era mesmo abrirmos um poço, defecarmos para a fossa, cultivarmos as nossas batatas, produzirmos o nosso vinho, tratarmos das nossas galinhas. Mas ela diz-me que não. Como pagaríamos depois a gasolina, o gás, a água – esse bem de todos que enche os bolsos a alguns -, a electricidade, as telecomunicações, o seguro do carro, as despesas de manutenção da conta no banco? Como é que pagaríamos todos esses bens essenciais? Sabemos que o consolador conforto sai caro, e, para quem não pode ou não sabe ou não quer, sai assim a modos que desconsolado. Vivemos em tempos de desconsolado consolo. Somos escravos do conforto sem o qual já não sabemos viver, nem podemos. A «lei, as políticas, as polícias, os inspectores, os fiscais, a imprensa e a televisão», por ordem que não minha, pura e simplesmente não deixam. Daí que valha a pena ler este parágrafo de António Barreto e pensar no que é ser livre dentro do capitalismo globalizado: «Quem não quer funcionar como uma empresa, quem não usa os computadores tão generosamente distribuídos pelo país, quem não aceita as receitas harmonizadas, quem recusa fornecer-se de produtos e matérias-primas industriais e quem não quer ser igual a toda a gente está condenado. Estes exércitos de liquidação são poderosíssimos: têm Estado-maior em Bruxelas e regulam-se pelas directivas europeias elaboradas pelos mais qualificados cientistas do mundo; organizam-se no governo nacional, sob tutela carismática do Ministro da Economia e da Inovação, Manuel Pinho; e agem através do pessoal da ASAE, a organização mais falada e odiada do país, mas certamente a mais amada pelas multinacionais da gordura, pelo cartel da ração e pelos impérios do açúcar». A ver se não me esqueço de dizer isto á minha sogra, cujas galinhas criadas nas traseiras lá de casa podem, a qualquer momento, provocarem-nos uma terrível indigestão.
*Título respigado aqui.

VIOLÊNCIA DOMESTICADA

Não há nada mais estúpido do que ligar a televisão quando se procura repousar. A televisão é inimiga do repouso. Há muito que se apelida a televisão de «janela aberta para o mundo», o que, dito de outra forma, é uma janela aberta para quem mais nos agride. Como sou muito estúpido, ainda não passei à prática o que já estou farto de saber em teoria. Ontem, enquanto procurava repousar duma manhã e início de tarde cansativos (isto de estar desempregado é uma canseira que nem imaginam), liguei a televisão. Na RTP1, o João Baião falava com o contador de histórias José Hermano Saraiva. Mudei para a SIC, espero que não seja necessário explicar porquê. Na SIC, um tipo careca e a Rita Ferro Rodrigues, essa grande referência da blogosfera portuguesa, falavam sobre não sei o quê com não sei quem. Como só tenho quatro canais, mudei para a TVI. Impõe-se um esclarecimento: não passei pela 2 porque, como já disse, queria apenas repousar, verbo que a 2 desconhece tal é o trabalho a que nos obriga cada minuto da sua programação. Na TVI decorria um programa com este magnífico nome: As Tardes da Júlia. Que fiquei eu a saber acerca das tardes da Júlia? Nada que mereça ser partilhado. Mas houve algo nas tardes da Júlia que me prendeu por instantes ao ecrã da televisão. Algumas senhoras contavam com uma naturalidade extraordinária as suas experiências de casamento mal sucedidas. A ideia, segundo percebi, era enaltecer a coragem das mulheres que decidiram divorciar-se. Como acredito ser muito mais indispensável a coragem na decisão do casamento, julgo sempre o divórcio, apenas e tão só, um acto de bom senso. Como bom senso teria sido evitar toda a trapalhada que um divórcio implica, lá está, se se tivesse tido a inteligência de evitar o casamento. Mas o que mais me chamou a atenção naqueles exemplos foi a vitimização da mulher, a tipificação do género feminino como o género frágil, vítima desses terríveis machos que usam e abusam da ingenuidade feminina. Esta redução da mulher ao papel de vítima transforma-a, quase sempre, numa criancinha adulta, uma espécie de inocente, frágil e ingénua criatura que, nas mandíbulas poderosas e venenosas dos homens, não pode esperar outro fim que não seja o da traição, da manipulação, da violência. É verdade que a violência doméstica em Portugal é uma realidade absolutamente vergonhosa, é verdade que, numa sociedade tipicamente machista como a nossa, são as mulheres quem mais sofre com esta realidade (a PSP registou em 2006 um total de 8.828 ocorrências com indicação de 7.412 vitimas do sexo feminino, 1.195 do sexo masculino, 311 menores de 16 anos e 496 idosos). Mas seria bom não esquecer que a barbárie não escolhe género, bestas de calças e de saias é o que para aí não falta. No dia em que nos chega a notícia de mais um homem assassinado pela sua mulher, ao que tudo indica devido a questões relacionadas com partilhas, esta realidade da violência doméstica deve fazer-nos pensar nas chamadas variantes ou, se quiserem, para ser manso, nas excepções à regra. Ainda há não muito tempo, uma senhora da chamada high society também passou a ver a aurora aos quadradinhos, por ter mandado matar o marido. Mais uma vez questões relacionadas com dinheiro. Estou em crer que há para aí muitos homens vítimas de mulheres que não procuram outra coisa nas suas relações senão sujeitos que lhes sustentem os vícios, as festas e o chá das cinco com as amigas, casacos de pele, malas e sapatos de marca a condizer. Há para aí muito homem, escravo do trabalho, cuja vida é um inferno diário, porque é uma vida cingida a um único elemento: ganhar dinheiro para não ter que ouvir a mulher chamar-lhe falhado ou inútil. Estas questões não podem ser esquecidas, sobretudo numa sociedade tipicamente machista, como já afirmei, onde ainda hoje há muito a ideia de que cabe ao homem trabalhar para que a mulher possa ficar em casa a dar ordens à empregada. Não é preciso conhecer nenhum estabelecimento prisional feminino para constatar que a violência doméstica tem mais rostos do que aqueles geralmente propagados. E enquanto continuarmos a olhar a mulher como a tal criatura ingénua, inocente e frágil, é a própria mulher quem mais perde com isso.

26.11.07

«PARA O BURGESSO PORTUGUÊS HÁ SEMPRE UM BURGESSO MAIS BURGESSO DO QUE ELE»

José Gil bem podia não se ter dado ao trabalho, que a toda a hora parece haver quem pretenda servir de exemplo para as suas teses: No almoço do CDS-PP que assinalou o aniversário da operação militar do 25 de Novembro de 1975, na Amadora, Pedro Moutinho (líder da Juventude Centrista) disse ser preciso "apontar com frontalidade" alguns dos principais responsáveis por actos como os "sequestros e incêndios às sedes do CDS-PP logo após a revolução de Abril de 1974 e que continuam hoje no activo". "Falo do actual presidente da Comissão Europeia, Durão Barroso, que mais tarde se renderia às virtudes do capitalismo. Falo também das bombas das FP 25 de Abril e políticos actuais como Francisco Louçã, Luís Fazenda, Jerónimo de Sousa, Odete Santos e Bernardino Soares", disse. Segundo os registos da Assembleia da República, o actual líder parlamentar do PCP, Bernardino José Torrão Soares, nasceu no dia 15 de Setembro de 1971, tendo por isso quatro anos quando se deu o 25 de Novembro de 1975.

A POLÉMICA

Fico a saber, através do Coriscos, que anda para aí polémica entre VPV e MST. Não é novo o desaguisado. Até eu, que não os leio, sei que há muito andam de costas voltadas. Mas juntos davam um belo partido: VPV-MST. Como não li o livro de MST nem a crítica que VPV lhe dedicou, ficar-me-ei apenas pela existência da polémica. Ao contrário da Helena, julgo serem estas polémicas muito reveladoras e edificantes. Não são um insulto ao público, é o próprio público que se deixa insultar no acto de compra do jornal. Sabemos bem que o público português aprecia ser insultado, por isso compra estas polémicas, entesa-se com elas, baba-se a cada injúria, a cada farpa, a cada invectiva como quem presencia um milagre. Há uma razão para este paupérrimo estado de coisas, essa razão é o facto de andarmos todos de mãos nos bolsos, com a cabeça enfiada na gola, a escondermos podres que, fossem assumidos, há muito teriam tirado gravidade a vários factos que a não merecem. Porque, regra geral, somos cobardolas, deixamo-nos entusiasmar, qual criança arisca de dedo imerso no pacote do açúcar, com as transgressões dos outros. É verdade que, no caso em causa, muito pobre e previsível parece ser a transgressão. Ainda assim, pagamos para ver o outro transgredir, frustrados que havemos de ser toda a vida por nunca nos darmos ao risco de ultrapassar os limites.

AS ESCOLHAS DE MARCELO


Tenho andado a esforçar-me para perceber as razões da ansiedade que há muito me aflige, uma ansiedade que tem vindo a transformar-se, muito sorrateiramente, em melancolia e, nos seus instantes mais graves, inexorável depressão. Descobri ontem que Marcelo Rebelo de Sousa é uma dessas razões. Todos os domingos, enquanto aguardo o Diz Que É Uma Espécie de Magazine, obrigo-me a escutar o professor. É um momento de angústia que não se compara sequer à extensão dos intervalos da TVI. Durante os intervalos, o telespectador descontrai, olha par ao lado, sonha, pensa na vida, desliga-se, adormece. Com o professor isso é impossível, já que o professor irrita-nos como uma espécie de ruído permanente do qual não nos conseguimos abstrair. Acontece-me, por vezes, quando vou a conduzir reparar num qualquer ruído. Meto-me a desconfiar de uma avaria iminente, depois penso num qualquer objecto estranho colado ao carro, suponho hipóteses várias que, no seu conjunto, não passam sempre de hipóteses com um único sentido: irritarem-me. O mesmo sucede quando ouço o professor Marcelo. Repare-se que até podíamos ver na sua performance uma espécie de entrada ao humor dos Gato Fedorento, mas desde que comecei a frequentar restaurantes de qualidade que sou muito exigente com as entradas. O professor não chega sequer a ser uma azeitona deslavada, um pacote de manteiga insossa, ele é mesmo a pior entrada que uma refeição de riso pode ter. Escuto-o como quem observa o tipo da frente na fila para o Multibanco. Insere o cartão, engana-se no código, volta a inserir o cartão, levanta dinheiro, não se conforma com o saldo, volta a inserir o cartão, faz uma consulta de movimentos, demora-se a verificar os movimentos, volta a inserir o cartão, faz um carregamento de telemóvel, e nós para ali à espera como quem desespera. O professor Marcelo é, sem dúvida, o tipo que está à nossa frente na fila para o Multibanco. Ainda por cima lembra-me um House arrumadinho, de barba feita e bem penteado, aprumado na indumentária, profundamente desinteressante e entediante na prosa. As pessoas arrumadinhas são sempre desinteressantes. A verdade é que nunca lhe ouço nada que valha a pena ouvir, fala muito por gestos, é bastante expressivo, inclina-se para cima da mesa como quem ataca o vazio com ainda mais vazio, tem aquilo a que os incultos gostam de chamar o dom da palavra. O dom da palavra, por outras palavras, é só tagarelice. O professor é isso mesmo, um tagarela. Opina acerca de tudo, faz previsões, dá notas, ainda sacode a ponta da língua, no final, com umas curtas que são, geralmente, favores que o professor faz aos seus acólitos ou, na pior (melhor?) das hipóteses, correcções das bacoradas da semana anterior. Já não há pachorra para As Escolhas de Marcelo, que estão neste momento para a opinião política como o vinho a martelo está para a vinicultura.

Que nome dar a dois pontos que se encontram
senão um ponto apenas? Como chamar a duas linhas
que unem os extremos senão uma única linha?
Duas gotas de água que se juntam não são uma só gota?
Não serão os oceanos apenas nomes para um único nome: mar?
Todos os continentes são a terra.
Todos os passos, o andar.
Todas as palavras são a fala.
Todas as folhas, o livro.
Quando o mesmo se une, cumpre-se. Tem o mesmo sentido,
a mesma matéria, o mesmo nome.
É uno. Único. Diverso, apenas esse modo
de tocar uma única boca. Como hei-de chamar-te agora?
Teu nome é plural. Plural é o meu nome.
Só o amor que os une é singular.

Joaquim Pessoa

Joaquim Pessoa nasceu no Barreiro a 22 de Fevereiro de 1948. O seu primeiro livro, O Pássaro no Espelho, veio a público em Março de 1975. Ideologicamente ligado ao Partido Comunista, colaborou em vários jornais e revistas, como a Vértice e a Sílex. A sua poesia foi várias vezes premiada. É ainda autor de algumas obras de ficção e está representado em diversas antologias e volumes colectivos.

24.11.07

NANOFICÇÃO

A vida só lhe pregava rasteiras e ele aprendeu a rebolar.

ZONA AUTÓNOMA TEMPORÁRIA

Hakim Bey, pseudónimo de Peter Lamborn Wilson (n. 1945), é uma figura curiosa. Buscando na Internet sobre o seu nome, ficamos a saber que é escritor, ensaísta e poeta, intitula-se “anarquista ontológico”, escreveu sobre sociedades secretas, Fourier e Nietzsche, viveu na Índia, Paquistão, Afeganistão e Irão, tem procurado conciliar a doutrina sufista com o anarquismo, o que, já de si, parece projecto tão ambicioso quão aliciante. O resultado desse esforço é o “anarquismo ontológico”, apresentado pela frenesi, parcial mas certeiramente, numa breve colectânea de textos, editada em 2000, reunidos com o título Zona Autónoma Temporária - pequena amostra do pensamento deste autor, cuja complexidade pode ser facilmente constatável, a título de exemplo, neste sítio. Se quisermos ser precisos, teremos de remeter as propostas de Hakim Bey para uma já muito longa tradição do pensamento dito marginal. No entanto, a pergunta impõe-se: que pensamento é esse que possa ser classificado de marginal? Classificá-lo é, em parte, retirá-lo da margem e recentrá-lo, ainda que isso não signifique institucionalizá-lo. Classificar é integrar qualquer coisa num paradigma, mesmo quando essa qualquer coisa se distinga das demais por ser uma força de resistência ao paradigma. Evitemos então as classificações. Quando falamos em “tradição de pensamento marginal” pretendemos referir-nos às propostas filosóficas que se situam na ténue linha da ruptura. É por essa razão que, a título de exemplo, um autor como Nietzsche será sempre um autor marginal, pois todo o seu pensamento situa-se, na forma e no conteúdo, nessa linha de ruptura que pode ser, ao mesmo tempo, uma linha de fusão de perspectivas, à partida, antagónicas. Curioso notar que, tal como sucede no filósofo alemão, também os textos deste pequeno volume resistem a rotulagens de género. Na verdade, eles são poéticos e filosóficos; não propõem um programa sistematizado, mas avançam com propostas num registo que eu diria de orientação no interior do caos; são textos breves que manifestam sem se tornarem manifestos, que instruem sem pretenderem ser iniciáticos. Muito resumidamente, o que o anarquismo ontológico de Hakim Bey "advoga" é o imediatismo numa época onde «toda a experiência é mediada». Contra a mediação da experiência, contra a sobriedade, o imediatismo surge enquanto acto e jogo, sem qualquer propósito de «programa estético», sem intenções comerciais, ao jeito de uma festa onde os participantes, pela prática, libertam-se de «toda a mediação e alienação» típicas das sociedades modernas. Em última instância, diria que este imediatismo consiste numa tentativa de transformar a vida numa espécie de performance movida pelo amour fou. Este amour fou surge, então, como pré-condição da liberdade, pois «floresce com os dispositivos anti-entropia». A mais lógica manifestação deste imediatismo é aquilo a que Hakim Bey chama da terrorismo poético: «O Terrorismo Poético é um acto no Teatro da Crueldade que não tem palco, nem filas de cadeiras, nem ingressos, nem paredes. Para que funcione, o Terrorismo Poético tem de ser categoricamente divorciado de todas as estruturas convencionais para o consumo de arte (galerias, publicações, media). Até mesmo as tácticas situacionistas do teatro de rua serão hoje demasiado conhecidas e previsíveis.» A ideia é, pois, a da imprevisibilidade, do choque, da provocação da mudança. As zonas autónomas temporárias serão, deste modo, as zonas onde a liberdade acontece de uma forma imediata, as zonas onde o amour fou acontece como um acto terrorista, no entanto poético, um acto de fazer e não de desfazer, um acto de prática que é, sem suma, a prática da festa. Transformar a existência numa zona autónoma temporária será um projecto demasiado ambicioso para qualquer um, mas talvez não seja tão impossível quão impossível parece ser existir sem as nossas zonas autónomas temporárias. Que o temporário possa passar a permanente é apenas o que torna o jogo apetecível, pelo que talvez não seja má ideia começarmos por boicotar as figuras sociais que nos delimitam as zonas autónomas temporárias. Cada qual que escolha as suas. A pouco e pouco, tenho tentado escolher as minhas.

23.11.07

O MANUAL VERGONHOSO

Desculpem o alarido, mas esta questão é ainda mais grave do que parecia. Então não é que, como informa o Luís na caixa de comentários, o manual acompanha um portátil e-professor (daqueles da campanha lançada pelo Governo, destinada à aquisição de portáteis por professores e alunos). Ou seja, numa campanha lançada pelo Governo, achincalha-se o nome dum cineasta cuja obra tem sido em larga escala patrocinada pelo próprio Governo. Que dirão estes senhores sobre a sugestão que vem no manual da TMN?

22.11.07

A MÚSICA DAS QUOTAS

Fico a saber, através do Retorta, de uma interessante discussão sobre a chamada Lei da Rádio, prevendo que «seja emitida entre 25% e 40% de música portuguesa nas operadoras nacionais, cabendo ao Governo determinar a percentagem anualmente». Que caiba ao Governo determinar a quantidade de música portuguesa a fazer parte da «programação musical dos serviços de programas de radiodifusão sonora» já é razão mais que suficiente para não estar de acordo com tal lei. Aliás, torço sempre o nariz a tudo o que meta quotas ao barulho. Tendo a desconfiar das quotas por me parecerem quase sempre métodos esfarrapados para disfarçar os buracos negros do mundo em que vivemos. E ver o Governo a meter as manápulas na programação musical das rádios, obrigando-as a cumprir com tanto de tanto de música produzida interfronteiras, é algo especialmente incomodativo. Vocês já imaginaram o que seria obrigarmos os prontos-a-vestir a venderem 25% a 40% de roupa produzida em Portugal? Esta pergunta de Francisco José Viegas faz todo o sentido: Se o legislador pode «evangelizar» a propósito da «música portuguesa» (falando do património, dos valores, das nossas coisas), o que o impede de evangelizar acerca da gastronomia, do futebol, da arte em geral, das raças caninas? É uma coisa um bocado achinesada, esta do Governo querer obrigar quem vende a vender o que o Governo acha, lá do alto da sua sabedoria, que deve ser vendido. O que me apoquenta não é que as rádios portugueses passem mais ou menos música portuguesa. Apoquenta-me muito mais que não existam programas sobre música na televisão, seja ela portuguesa ou de outra nacionalidade qualquer. Apoquenta-me que o público português ainda seja tão tímido no que respeita ao consumo de música portuguesa, nomeadamente quando pensamos em frequentar concertos. Dá-se mão de 50 ou 60 euros por qualquer porcaria que seja capa da Mojo, da Rolling Stone, da Q, etc., para depois achar caro um concerto de um artista português ao preço de 10 ou 15 euros a entrada. Quanto à qualidade da música portuguesa, não falo. Acho que é como as outras. Há de tudo, para todos os gostos e feitios. O que tenho a certeza é que nunca houve tanta quantidade. É certo que o mesmo não se pode garantir quanto à qualidade. Mas não será assim em todo o mundo? Dito isto, as rádios que passem lá o que bem entenderem. No meu caso pessoal, não sou consumidor de rádio. Ouço muito raramente a Antena 1, apenas quando vou a conduzir e quase sempre de manhã. Pouco mais. Mas sou grande consumidor de música. Não tanto quanto gostaria, que o dinheiro não é muito, mas ainda vou comprando uns CDs e assistindo a uns espectáculos. Por exemplo, no próximo sábado conto assistir a este:


Rita Braga, no Trinca-Espinhas, em Caldas da Rainha, no próximo dia 24. Ver/Ler entrevista.

MAIS LADRÕES IMPUNES

"Verifica-se que os limites de impenhorabilidade não são respeitados pelas instituições bancárias", pode ler-se no comunicado emitido hoje pela Provedoria de Justiça. Os bancos congelam a totalidade dos saldo da conta penhorada, "independentemente do seu valor, sem curar de saber se aquele congelamento viola os limites legais", acrescenta a mesma instituição. O Código do Processo Civil prevê que os rendimentos de salários e pensões só podem ser penhorados até ao limite de um terço, caso o contribuinte em causa não tenha outra fonte de rendimento. Além disso, o valor penhorado desse tipo de rendimentos não pode ultrapassar o valor do salário mínimo, ou seja, 403 euros.

THE NEW WORLD

Leio isto com um sorriso no frontispício. Também sei que Pedro Rolo Duarte já tem o seu weblog, certamente uma janela aberta para qualquer coisa muito interessante. Tenho a certeza que outros virão. O que era um espaço de comunicação sem regras, uma febre momentânea, um repositório de gente frustrada, transforma-se, a pouco e pouco, numa aliciante ferramenta de trabalho. Com a jornalada aos trambolhões e os blogs a cheirarem a graveto, toca de arregaçar as mangas e meter os dedos à tecla. A blogolândia é, neste momento, uma espécie de new world sem fronteiras. Não admira que a pretendam (ir)regular.

O MUNDO AGORA É ISTO

Já sabemos, o mundo agora é isto – explica-me o tipo da seguradora. Andava eu a desembolsar €170, de seis em seis meses, para o seguro do carro. Fui ao sítio de uma seguradora concorrente fazer uma simulação e verifiquei que podia ficar a pagar €135 anualmente. Falei com o tipo da minha seguradora sobre o assunto, dizendo-lhe que ia mudar de seguradora. Foi aí que ele fez o favor de me lembrar que o mundo agora é isto, já sabemos. Num instante passei a pagar, pelo mesmo seguro, metade do que pagava. Mas dou outro exemplo de como o mundo agora é... isto. Farto de pagar a assinatura mensal do telefone, fui à PT dar baixa do mesmo. Quando disse que ia optar por outra operadora, muito solicitamente foram-me oferecidas pelo funcionário da PT as mesmas condições da outra operadora. O mundo agora é isto: podemos ser roubados à vontade que se não dermos pelo roubo, então ninguém dará. E os ladrões prosseguirão impunes a roubar quem ainda não saiba que o mundo agora é isto, já sabemos.

ERROS DE CONCORDÂNCIA



Dou frequentemente erros de concordância, daqueles que seriam evitados com uma leitura mais atenta do que escrevo. Quando me apercebo do erro, fico irritado, envergonhado, zangado. Principalmente porque calha sempre aperceber-me do erro já demasiado tarde. Não ser mestre em gramática da língua portuguesa não me serve de desculpa, pelo que o meu esforço de escrita consiste numa espécie de aprendizagem por tentativa e erro. Como não tenho quem me reveja os textos, é frequente, de texto para texto, chegar a novas conclusões sobre a língua portuguesa. Mas há erros de concordância acerca dos quais nada concluo. São explicados apenas pela desvergonha, pela ignorância, pela imbecilidade e pela mais completa ausência de senso crítico de quem escreve ao mesmo tempo que, esforçada mas ingloriamente, tenta pensar. Normalmente esses erros de concordância não são bem erros de concordância, no sentido mais correcto da expressão. Refiro-me a erros de concordância entre o pensamento e a realidade, entre o bom senso, a tal coisa mais bem distribuída do mundo, com a devida excepção de Portugal, e o respeito mais básico pela obra alheia, pelo legado cultural daqueles que ousaram fazer mais com um dedo do que nós algum dia faremos com o corpo todo. Vem isto a propósito de um texto que o meu amigo Luís Germano encontrou no manual cuja capa se reproduz acima. O meu amigo chama-lhes energúmenos. Energúmenos é elogio, caro Luís. Eles são mesmo é grunhos do mais grunho que pode haver. Atentem-se bem no conselho sublinhado com uma bola a vermelho:

Para quem veja mal, o que está escrito é: «Lembre-se do que pensa dos filmes do Manuel de Oliveira. Corte o redundante o ritmo é fundamental.» (sic)

21.11.07

A MINHA PALAVRA FAVORITA



A Minha Palavra Favorita, CentroAtlântico.pt, 2007
(ver mais aqui)

A minha palavra favorita é “mão”. Escrevi cinco textos, um para cada dedo de uma mão: 1) de amigo; 2) de brincar; 3) de desmistificar; 4) de manifesto; 5) de amor.
O quarto texto é o seguinte:


MANIFESTO

Eu gosto muito dos senhores que moram no meu prédio.
O prédio é alto e tem elevadores. Assim é melhor porque ninguém
tem que carregar ninguém às costas. Quer dizer, as pessoas
também podiam ir pelo seu próprio pé mas isso era se não houvesse
pessoas no meu prédio que precisam de favores. Precisam,
e depois pagam com as costas na subida - Ouvi dizer que há
pessoas no meu prédio que têm em casa florestas normandas (eu
cá só ervas daninhas!) É que o elevador do meu prédio avaria
muitas vezes. Avaria, e depois os senhores dos andares de cima
precisam de carregadores. As pessoas dos andares de baixo
começaram a nascer todos os dias com as costas mais
largas para poderem carregar melhor, e agora o elevador
avaria quase sempre. A minha sorte é eles saberem que
eu só tenho em casa ervas daninhas. Nunca me pedem para
os carregar nem sequer estacionam as suas árvores novas
a barrar-me a entrada de casa: têm medo de ser contaminados.
Agora são os senhores dos andares de cima que me pedem
favores: se posso mudar de casa, de prédio, que até me
oferecem uma casa com florestas normandas lá dentro.
Mas eu não quero. Estou bem aqui. As minhas ervas
chegam já ao primeiro andar. Às vezes subo por elas
e convidam-me para jantar. Falamos e rimos e quando
nos calamos o silêncio à volta é maior.
Até agora cresceram sempre frescas pelo seu pé acima.

Rui Costa

ASSIM SCOLARI

Vinha a escutar as declarações de Scolari na conferência de imprensa após o jogo com a Finlândia, que não vi, e lembrei-me de alguns colegas que, fazendo tudo para serem despedidos, fartos que estão do trabalho que têm, nunca o são por terem o azar de tudo lhes correr bem. Eles bem se esforçam para que corra mal, mas a sorte deles é macabra. Quanto pior fazem, melhor a vida lhes corre.

A Casas das Musas #3

A terceira musa que escolhi para este pequeno museu não é uma senhora sem idade como as anteriores, mas uma eterna mulher-criança que teve o seu apogeu artístico ao vencer o Festival de Sanremo em 1964, com apenas 16 anos: Gigliola Cinquetti (ou Lolita?) conquistou o público italiano com o seu ar de boa menina ao interpretar “Non ho l’età per amarti” de Nicola Salermo, com letra de Mário Panzeri. Gigliola Cinquetti seduziu também o público em toda a Europa ao vencer com a mesma canção o Festival da Eurovisão na Dinamarca. Confesso que esta música me deixa algo irritada, sobretudo a letra, que recentemente descobri ter sido escrita por um homem; porque é que contam estórias às meninas sobre príncipes e princesas? Porque é que não as avisam que existem muitos príncipes que afinal são sapos e vice-versa? Porque é que não as avisam que se “engolem” muitos sapos na vida e que isso não tem nada a ver com o bom ou mau comportamento? Porque é que as meninas têm de ser bem comportadas? Porque é que quando crescem continuam mulheres-meninas tontas e românticas? Não sei qual será a origem destes padrões, mas sinto que contribuem para o facto de os homens continuarem a ter a vida mais facilitada na sociedade actual, onde supostamente a mulher já não deveria ser considerada o sexo fraco – as mulheres entretanto conquistaram um estatuto diferente na sociedade e estão bem mais protegidas legalmente do que no início dos anos 60, o que não quer dizer que as leis se apliquem sempre, porque a espécie humana continua a ser muito tacanha. Apesar de todas estas questões que levanto, não deixo de ter um certo carinho por Gigliola e também pela tonta anónima que surge no vídeo a traduzir a letra para francês.

Maria João

ENVOI


Recorda-me quando vieres para o teu reino.
Recorda-me, mendigo de espelhos, quando fores confirmado
no sono de realização no branco travesseiro.

Recorda-me que bato à janela,
que coxeio no meu bastão flexível e conheço
as luzes do norte trémulas de nervos.

Recorda-me no teu Outono bom.
Nos meus pratos de geada vou
por entre a loiça de colinas em queda,

pedras, planícies, tudo se abatendo.
No meu Inverno do vidro desfeado recorda
me no teu Outono, no teu maino sono.
Tradução de Manuel de Seabra.

Iain Crichton Smith

Iain Crichton Smith nasceu no dia 1 de Janeiro de 1928 em Glasgow. Com uma obra escrita em gaélico e inglês, formou-se em Inglês na Universidade de Aberdeen. Estreou-se como poeta em 1955, com a obra The Long River. Foi professor durante algum tempo, mas retirou-se em 1977 para se tornar escritor a tempo inteiro. Faleceu a 15 de Outubro de 1998.

IRREGULAR

A ideia dos weblogs ficarem sujeitos à regulação de uma autoridade que não seja a própria consciência de quem os produz repugna-me. Nestas como noutras matérias, aprecio a simplificação. Um weblog é um diário, com a particularidade de ser on-line, ou seja, aberto a quem o pretenda visitar. Só a quem não gosta de pensar pode incomodar quem pensa alto. Bem sei que nos tempos que correm pensar entrou em desuso, o que torna afrontoso pensar alto. Mas bolas, regular um diário é algo que não passa pela cabeça nem de Deus nosso (vosso?) Senhor, que nos dotou de livre arbítrio para não ter o trabalho de decidir por nós o que apenas a nós cabe decidir. Não nos basta já sermos censurados na carteira todos os dias, ainda querem agora censurar-nos na boca e no pensamento? E quem regulará tanta incontinência reguladora?

20.11.07

ESCLARECIMENTO

Devo esclarecer que nunca preparei as poucas intervenções públicas para as quais fui convidado com o pretexto de falar sobre os meus livros ou sobre obra alheia. É verdade que penso sobre o assunto antes do assunto transformar-se em acto, é verdade que fico ansioso, é verdade que muitas soluções me passam pela cabeça antes de a cabeça começar a bater na parede do auditório, mas o mais que preparo do que fica dito é uma ou outra ideia, um ou outro gesto, que muito vagamente concluo ser de interesse referir. Aconteceu assim no passado sábado, pelo que julgo importante aclarar algumas afirmações que poderão, de uma forma ou outra, ter ficado embaciadas pelo bafo ardente da vodka. A minha postura relativamente ao mundo editorial é muito simples de entender se tivermos em conta o facto, não fatídico mas real, de vivermos num país onde toda a gente conhece toda a gente, onde toda a gente que conhece toda a gente nada sabe sobre a gente que conhece, onde toda a gente que conhece toda a gente se arroga no direito de censurar, opinar, julgar sobre o nada que sabe de toda a gente que conhece. O país é, de facto, pequeno; o mercado dos livros é, de facto, pequeno; as pessoas, na generalidade, são, de facto, pequenas. É provável que sejamos um país de anões com grandes ideias, mas as grandes ideias, perdoem-me o realismo, não pagam as contas domésticas. Sendo assim, a vidinha tem, por questões de sobrevivência, que adoptar outros rumos que não sejam os da literatura. Não tenho, nunca tive, a ambição de viver do que escrevo, muito menos de viver da escrita (podia fazer concessões, pôr-me a escrever por encomenda, etc. e tal), assim como não desejo ser olhado como aquilo que não sou: um escritor. Escrevo, como dizia a outra, porque não posso deixar de escrever. Há qualquer coisa de físico na minha relação com a escrita que não sei explicar, só sei explicar que tudo o que escrevo me sai do corpo e é por me sair do corpo que tudo o que escrevo me torna, digamos assim, mais leve, como quem respira melhor. Daí que goste de identificar a prática da poesia (a poesia faz-se) com a respiração, não para atribuir um estatuto vital à poesia, não para conferir ao poético um lugar na hierarquia da sobrevivência que seria um lugar divinal, lugar esse que não reconheço a nada que não seja o que nos permite, como diria Ruy Belo, chamar de divinas a algumas coisas como o mar, o sol, a lua, os filhos, mas porque vislumbro na poesia, manifeste-se ela onde se manifestar, um lugar de respiração que não encontro noutras parte do mundo. Mas quanto a editar, quanto a editar o processo é mais complexo. Porque tenho esta perspectiva sobre o mundo em que vivo, prefiro, tanto quanto me seja possível, ser acolhido em projectos editoriais onde o factor humano esteja presente e seja facilmente identificável. Quando penso nas editoras que aprecio, nas editoras portuguesas, penso também nas pessoas que estão por detrás desses projectos. Mencionarei algumas delas para não me acusarem de ficar por meias palavras: & etc., Frenesi, Edições Mortas, Black Sun… são projectos editoriais que me habituei a admirar à distância por ver neles rostos que me habituei a admirar… à distância. Se é importante que um livro venda, muito mais importante é que esse livro chegue a quem está, de facto, interessado nesse livro. Que os meus dois últimos livros tenham sido publicados por pequenos projectos editoriais (OVNI e Canto Escuro), cada qual com as suas especificidades, a procurarem, muito arduamente, mondar os seus rumos, implicando isso um esforço pessoal, uma dedicação aos livros que está muito para lá de intuitos meramente comerciais e de sobrevivência monetária, embora esses sejam também intuitos dignos de conta, só me deixa ainda mais satisfeito. Porque é de facto aí, onde o humano ainda tem um lugar que o mercado não aniquila, que me sinto bem. Vender, para mim, não é primordial, assim como publicar também nunca foi. O que é realmente primordial, para mim, é escrever. E se me permitem a presunção, penso que a actividade neste espaço serve bem de prova ao que tentei esclarecer neste texto.

DO FUNDO DA MESA

O jantar já tinha sido servido. No fundo da mesa,
os pratos amontoavam-se por entre restos ilesos
de comida. Era para ali que nos retirávamos, para
deixar de sentir por momentos, sobre os ombros,
o peso da literatura. A sua incomodidade. Não
seria possível dela extrair, agora, um novo uso?
Nessas alturas, a filosofia consolava-nos do ruído
das conversas, da própria ênfase a que recorríamos
para que, sobre a mesa, o poema ficasse escrito.
Porque o fazíamos? Tornar-se-ia o mundo
mais limpo depois de escrito? Como as mãos
que no rebordo da toalha, enxugávamos?
E no entanto era esse o melhor argumento
de que dispúnhamos: o das mulheres-escritoras
que, noutro século, fiéis ao desvelo dos armários,
reinventavam o mundo no aconchego das cozinhas.

Fernando Guerreiro

Fernando Guerreiro nasceu em 1950 em Lisboa. É professor na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, poeta e ensaísta. Membro fundador de Quatro Elementos Editores e da Black Sun Editores, assim como colaborador regular de revistas como Última Geração, Intervalo e Telhados de Vidro, traduziu autores como Jean Ray e Baudelaire. Começou a publicar em 1977, em edição de autor, com o volume Livros I/II. Da sua obra poética destaca-se o ciclo iniciado com Teoria da literatura (1997), e que incluiu os livros Outono (1998), Gótico (1999), Grotesco (2000) e Caminhos de Guia (2002).

Bom dia para o Henrique


um quase-nada nesta data querida.

muita saúde
Maria João

19.11.07

O MUNDO REAL

Fiquei hoje a saber da existência da Madeleine Online Store, onde todos poderão adquirir alguns belos presentes de Natal, high quality, a bons preços e, como é óbvio, para bons fins. Descubra a Maddie que há dentro de si, andando com uma ao peito.

CHUVA

William Edward Bloomfield Starkweather


Fico em casa sempre que a chuva chega. Fecho-me a escutar as bátegas nos vidros, olho a água escorrendo sobre a superfície das janelas, meto a mão de fora, por vezes, para sentir que é real. Deito-me a pensar na chuva, escrevo o sangue que há-de alimentar sanguessugas inverosímeis. Mas quando a água escorre sobre a superfície das janelas eu fico sem saber qual seja a superfície das janelas. Então ponho-me a pensar no que possa ser a superfície de alguma coisa. Sempre que a chuva chega, fico em casa a pensar no que possa ser a superfície de alguma coisa. E penso que a superfície de uma coisa é tudo o que uma coisa é, que nada mais há para lá da superfície. O que há, por vezes, é alguém a meter o braço de fora para sentir que é real. O que há é gente que não se contenta com a superfície e então escava, mete o braço de fora, sobe e desce, arromba, desbrava caminho, à procura do que possa estar para lá da superfície. Para lá da superfície há sempre uma superfície. Nunca compreendi a razão que leva tanta gente a procurar algo para lá da superfície. Esta tendência de andarmos para lá dos nossos passos, de imprimirmos constantemente o nosso corpo nas sombras, transformando-o numa espécie de fantasma carnívoro, é algo que se me apresenta com indecifrável estranheza. Por que razão não nos contentamos com a superfície das coisas? Não nos chega sabermos onde metemos o pé, temos sempre de saber o que se esconde por baixo do terreno onde assentamos o pé. Julgo haver muita melancolia nesta ansiedade, a mesma que nos reprime junto do desconhecido. Evitar o desconhecido é viver com a ilusão de que se pode conhecer alguma coisa, como, por exemplo, os elementos que compõem o nosso território, o nosso casulo. Evitar o desconhecido é partir do princípio de que existe algo que se conhece, como se isso fosse possível para lá da fé que colocamos nas relações com os outros. Evitar o desconhecido é viver enganado. Quando fico em casa a olhar a chuva que escorre nos vidros, concluo que nem os vidros nem a chuva se conhecem, apenas por acidente se tocam, apenas por acidente se estabelece este contacto que nos permite, a mim, à chuva e aos vidros, ficarmos dentro de um texto que, um dia destes, há-de alimentar sanguessugas inverosímeis. O mesmo se passa com todos os elementos que compõem o meu casulo. Observo esses elementos e penso como apenas à superfície nos conhecemos, à superfície de um olhar mais ou menos desatento, mas que não recusa aceitar haver entre nós uma vida que se partilha pela simples presença. Há objectos assim, que nos dizem haver vida na simples presença. São como retratos que nos enviam para situações, momentos, traumas, ocasiões que guardamos na memória. Talvez a memória seja o que está para lá da superfície, isto quando não a trazemos à superfície do corpo quando olhamos, por exemplo, um desses elementos que compõem o nosso casulo. Talvez a chuva seja a memória a vir à superfície do corpo, talvez o corpo seja como um vidro onde a água escorre. Este meu corpo de ficar em casa a pensar, este meu corpo de ficar parado a pensar, é um vidro onde escorrem memórias como se fossem a chuva chegando-se por acaso à pele. As memórias que escorrem sobre o meu corpo não são nada que o corpo não saiba já, pois por ele passaram como quem por ele ficou. São memórias de uma chuva insuficiente, uma chuva que vindo de tempos a tempos não chega para limpar tudo o que está sujo. Porque a sujidade resiste sempre ao detergente. É essa a razão que nos obriga a uma higiene diária, é essa a razão que nos obriga a uma limpeza constante dos recantos onde, rapidamente, o lixo se acumulará. Nada resiste ao lixo, o lixo cresce, acumula-se como uma praga, como um vírus. E nada há que o desfaça para sempre. Por isso fico em casa, quando a chuva vem, a pensar e a escrever o sangue que um dia alimentará as sanguessugas. Mal saberão elas que o meu lixo será o seu alimento. Mal saberão elas que é de lixo que se alimentam quando aqui vêm beber do meu sangue.

AS CINZAS DO CINZEIRO


Foi bom ter conhecido a família do Vítor, assim como um dos seus amigos de longa data, o David Soares, que já este ano lançou A Conspiração dos Antepassados. Foi bom voltar a estar com dois amigos cada vez mais presentes, a Maria João e o Fernando. Foi bom ter escutado, em viva voz, o Lourenço – não só escreve bem, como fala ainda melhor. Foi bom o acolhimento no Ogâmico. Obrigado a todos os que marcaram presença e a todos cuja ausência não nos marcou. Para já, O Meu cinzeiro Azul pode ser adquirido nas livrarias Du Bocage, D. Pedro V, Alexandria, Letra Livre e Ler Devagar, Mercado da Ribeira e Portugal ou através do e-mail cantoescuro@sapo.pt. Os títulos do Canto Escuro estarão também disponíveis no Mercado Negro, entre 4 e 7 de Dezembro, no Porto. Em breve, julgo, notícias sobre as livrariras do Porto onde poderão encontrar O Meu Cinzeiro Azul.

17.11.07

A Casa das Musas #2


Os amigos que me conhecem bem costumam fazer troça da minha atracção pela música da América Latina – é uma faceta um bocado tarada que tenho, por isso, a segunda Musa que trago para este pequeno museu é a Chavela Vargas, voz inspiradora que descobri nas bandas sonoras dos filmes de Pedro Almodôvar. A primeira Musa nem a comentei porque me deixa sempre sem palavras, mas a Chavela remete-me para o que é o grão da voz, como o definiu Roland Barthes em O Óbvio e o Obtuso, noção que o autor contrapôs com a tradição do bel-canto musical, a fórmula ou alma do canto; na textura da voz desta senhora sem idade sente-se a matéria das palavras cantadas, a sua rugosidade é desconcertante, porque mais do que língua e espírito, o seu canto é corpo e carne. Nascida a 17 de Abril de 1919 em São Joaquim das Flores na Costa Rica, foi para o México quando tinha 14 anos e desde cedo começou a interpretar a Canción Ranchera nas ruas, um género musical masculino, sensual, onde a temática do desejo e amor-paixão pelas mulheres era central; Chavela vestia-se habitualmente de homem, fumava e bebia muito, andava armada e era conhecida pelo seu poncho rojo. Gravou o seu primeiro disco em 1961 e ainda canta, talvez se recordem da sua aparição no filme de Julie Taymor, Frida Kahlo, onde interpreta Paloma Negra e em 2003, aos 83 anos actuou no Carnegie Hall. Apreciem este andrógino último trago que aqui vos deixo.
Maria João

QUEM TEM MEDO?

Com a mesma facilidade que denuncia, e bem, a utilização do medo como programa político, Daniel Oliveira refere-se a uma Europa a caminhar para o Estado Polícia. E dá exemplos, que são os exemplos do jornal Expresso: «Em França, usam-se câmaras voadoras ("drones”) para controlar as manifestações. Na Alemanha, aprova-se uma lei que autoriza o Estado a gravar e arquivar durante seis meses conversas telefónicas, mensagens de fax e acessos à Internet, incluindo de jornalistas, médicos e advogados.» De acordo, ainda assim talvez seja conveniente alguma calma e alguma precaução, não venhamos também nós a cair na tentação de usar o medo como programa político. O medo, por exemplo, da invasão da privacidade, da censura, da intimidação, etc. Outro exemplo seria o da aberrante ideia de criar uma espécie de “entidade reguladora dos weblogs”, ideia ridícula e atentatória do bom senso, à semelhança do ódio que a indústria musical manifestou, manifesta, manifestará contra a divulgação de música pela Internet. Abro um parêntesis: ainda hoje, ao descobrir os Le Partisan no Desmancha-Prazeres, dei graças à Internet por me ter possibilitado tal descoberta. Não dou graças algumas é a entidades reguladoras da liberdade de expressão. E nem me venham com defesas do bom-nome e da honra, quase sempre pretextos para impedir as vozes inconvenientes e descarriladas de serem incómodas. Nem que seja apenas quando manifestam estupefacção perante as mais elementares contradições dos cabeçudos bem pensantes.

PIADAS COM SEXO DENTRO

Para S., por causa de uma piada.

Estou convencido de que o número de piadinhas ranhosas e anedotas parolas sobre homossexualidade masculina não é proporcional às graçolas do mesmo género sobre homossexualidade feminina. A razão é simples de explicar: as piadinhas ranhosas e as anedotas parolas são um fenómeno tipicamente masculino. As mulheres são muito mais comedidas no humor e, quando o praticam, praticam-no quase sempre com recheio. Já os homens não. Os homens, geralmente, acham que podem ter graça com qualquer trocadilho fácil, com uma simples inflexão na caricatura das personagens, chamando nomes e proferindo asneiras com cheiro a arroto. Em termos de piadas sexuais, a homossexualidade masculina é um tema predilecto porque é um assunto a exorcizar. Homem que profira piadas sobre homossexuais é homem, porque ninguém goza consigo mesmo. A ideia é: olhem para mim todo macho a dizer piadas sobre os rotos. Mas se o tema é a homossexualidade feminina, então ficam inquietos. Os homens, na sua grande maioria, alimentam fetiches com lésbicas. Não me refiro às lésbicas que se parecem com homens, isso seria já domínio da bicharia. Refiro-me às lésbicas todas boas, como aquelas da série que anda a passar na 2, mulheres de peito feito, perna longa, anca em forma de morango. Essas lésbicas são o sonho de muitos homens, que julgar-se-iam mais homens se lhes fosse dada a possibilidade de concretizarem o sonho das suas vidas: inverterem o sentido do desejo de uma dessas mulheres. Conheço muitos homens que são assim, que olham uma lésbica toda boa e dizem: comigo começavas logo a gostar de homens. O que esses homens não entendem, jamais entenderão, é que nesse tipo de fetiche há um qualquer resíduo de transferência sexual. Enfim, como os domadores que pretendem domar as feras, não porque se sintam capazes disso, mas porque ao confirmarem essa sua capacidade se tornam domadores. No fundo, esses homens apenas desejam ser homens. Por isso levam tão a sério o lesbianismo, ou seja, por sentirem ser esse o território onde melhor poderiam afirmar a sua suposta masculinidade.

16.11.07

PERGUNTAS E RESPOSTAS

Há dias a jornalista Maria José Oliveira, do jornal Público, entrou em contacto comigo solicitando um breve depoimento sobre Debaixo do Vulcão, obra-prima de Malcolm Lowry. O depoimento foi hoje publicado no Ípsilon, editado a partir de seis perguntas às quais respondi com gosto e o mais espontaneamente possível. O meu depoimento é apenas um de vários que acompanham um texto bem desenvolvido e pedagógico sobre Lowry e a sua obra. Por curiosidade, na capa do Ípsilon vem Ian Curtis (ou será o actor que recentemente lhe deu corpo?), uma vida que, de certa forma, também aconteceu debaixo do vulcão. Reproduzo a seguir as perguntas e as respostas sem a edição de que foram alvo:

1. Publicou no seu blogue um poema de Lowry traduzido por José Agostinho Baptista. Essa faceta do Lowry não é tão conhecida como a sua obra romanesca. Encontra, na poesia e nos romances, um universo comum?

Encontrei o poema que refere no N.º 3 da revista “Telhados de Vidro” (2004). O universo comum entre esses poemas traduzidos por José Agostinho Baptista e o romance “Debaixo do Vulcão” é o próprio Lowry. Todos os autores têm as suas obsessões, os seus temas predilectos. Tratando-se de um autor onde o elemento autobiográfico é marcante, torna-se claro haver entre os seus poemas e a sua prosa vários pontos em comum. De todos eles, aquele que mais me toca é «o tiquetaque da morte real». Essa ideia de que a morte está presente em tudo, a todo o momento, e de que a consciência dessa presença transforma cada momento numa prova da nossa debilidade, da nossa perdição, é muito poderosa. É uma ideia desoladora e desesperante, mas muito de acordo com a vida ela mesma.

2. Quando leu pela primeira vez "Debaixo do Vulcão"? Voltou a lê-lo? Porquê?

Cheguei a Malcolm Lowry através de “O Anti-Édipo”, de Gilles Deleuze e Félix Guattari, que li quando era estudante universitário, portanto antes de 1997. Adquiri “Debaixo do Vulcão” numa feira de velharias, alguns anos depois, com uma dedicatória datada de 19-3-1969. Ainda não estou na fase de reler livros, tenho apenas 32 anos e toda uma história da literatura para ir actualizando. Mas é verdade que gosto de voltar, parcialmente, aos livros que mais me marcaram. “Debaixo do Vulcão” é, certamente, um desses livros. Não é propriamente um livro de reflexões filosóficas profundas ou de aforismos misturados com a narração de uma história, mas possui instantes narrativos aos quais gosto de regressar. Assim como algumas questões-limite para as quais nunca teremos resposta, embora a toda a hora nos ameacem como uma espécie de ferrete. Lembro-me desta: «Que é o homem senão uma alma pequenina dentro de um cadáver?».

3. "Debaixo do Vulcão" é um livro de culto?

Não sei o que é um livro de culto, por isso não posso responder a esta questão. Mas não sou ingénuo a ponto de negar a existência de autores que se tornam apelativos por razões que não estão directamente relacionadas com o que escreveram. Lowry era alcoólatra, tal como o personagem central, o cônsul Geoffrey Firmin. O cenário da acção é o México, terras onde a morte e o riso andam de mãos dadas. Quando Lowry morreu não tinha sequer 50 anos feitos. Não é um autor convencional. Talvez isso seja atractivo para alguns leitores. Pessoalmente, prefiro o que está escrito pelo que está escrito.

4. Para alguns leitores, o livro foi (e continua a ser) um murro no estômago. Também teve essa impressão quando o leu pela primeira vez?

Para quem já sentiu o estômago a contorcer-se de dores depois de levar um murro, a expressão é algo exagerada. Senti apenas que tinha lido um grande livro, um dos melhores livros que alguma vez li. Como já referi, é um livro que nos coloca frente a frente com questões essenciais, fá-lo de uma forma muito crua, sem rodeios, oferecendo-nos um retrato cruel da vida. Algumas dessas questões são a impotência dos homens na inversão do curso da história, a indiferença humana perante o sofrimento alheio, a condenação a uma inexorável solidão, uma desconfiança limite acerca da bondade dos homens, a tal presença da morte em tudo, a ideia de que o passado não tem remedeio. Basicamente, é um livro que nos diz não valer a pena sonhar. Isso é pura crueldade, no sentido que Artaud dava ao termo.

5. Lowry escreveu, no prefácio para a edição francesa da obra, que "Debaixo do Vulcão" era uma "autêntica história de um bêbado". Que comentário lhe suscita esta deifinição?

Diria antes a história dos fantasmas de um bêbado. Vejamos, conta-se que a ideia para o romance terá surgido quando, numa deambulação por várias aldeias e cidades mexicanas, Lowry avistou um índio moribundo a ser roubado na berma de uma estrada. Um moribundo a ser roubado é uma imagem suficientemente forte para inspirar um romance ou para nos colar ao balcão de um bar, pois é a imagem da decadência humana no seu aspecto mais abjecto e indecente. Isto sem censuras morais, pois quem rouba, neste caso, pode até fazê-lo por absoluta necessidade. A questão é que está a roubar um homem em agonia, está a roubar, digamos assim, a morte. Este tipo de imagem, recorrente, por exemplo, em filmes de guerra, é consternadora o suficiente para nos levar a questionar sobre o quão decadente pode ser o ser humano. Depois podemos responder a isso de várias formas, bebendo é apenas uma delas. Volto aos poemas traduzidos por José Agostinho Baptista. Um deles, intitulado “O Último Homem no Dôme”, começa e termina com dois versos bem esclarecedores: «Onde está o sublime bêbado? Será o grande bêbado? / (…) Uma vez que sou o último bêbado: bebo sozinho». “Debaixo do Vulcão” é, pois, a história de um bêbado a beber sozinho, brindando aos seus fantasmas.

6. Lowry é um escritor mal amado em Portugal?

Num país onde se lê tão pouco, apesar das estatísticas improváveis, todos os escritores são mal amados. Malcolm Lowry é apenas um deles.

Bloco de Apontamentos #62


MJLF, Alqueva, 2003



Mergulho em melancolia sempre que atravesso o Tejo e passo para o espaço onde o céu não tem tamanho nem fim. A planície alentejana aparentemente bela é amarga; vive de variações lumínicas, constantes contrastes que me atravessam os ossos. O céu na planície é magnífico, luminoso e dissonante; ora se mostra claro no azul infinito, ora as nuvens se espalham sobre ele, irregularmente, com lentidão nos passos, como se anunciassem uma catástrofe, caminhando e esperando pacientemente até se fundirem num cinzento de chumbo.

Maria João

A CORRENTE DOS FILMES


Carla, não tens que me pedir desculpa. Eu é que te agradeço. Aliás, estava a desesperar que nunca mais me chegava essa dos filmes. Só que cinco filmes é muito pouco, é um desafio quase macabro. Reparei que o Sérgio safou-se reduzindo o espectro a um filme por cada letra do seu apelido. Como o meu apelido é Fialho (seis letras), não adoptarei a mesma técnica. Tinha o Bento, hipótese que recuso por me parecer já demasiado forçada. Optarei antes pela espontaneidade. E assim de repente lembro-me de Nu (1993), O Sabor da Cereja (1997), Ossos (1997), A Barreira Invisível (1998) e Dolls (2002). Não, confesso que não foi de repente. Foram escolhidos a dedo e, só para contrariar, são todos a cores e relativamente recentes.
Naked porque Mike Leigh, sendo actualmente um dos meus realizadores de eleição, conseguiu nesse filme desenhar uma personagem tão cínica quão convincente. Daquelas personagens que não esquecemos por com elas nos identificarmos sem que com elas ousemos encontrar quaisquer semelhanças. Parece um paradoxo, mas não é. A personagem aí interpretada por David Thewlis é por fora o que muitos de nós somos por dentro, uns atormentados da vida - problema cuja solução, sabemos mas parece que não queremos, é a ausência de sentido, o absurdo.
O Sabor da Cereja, de Abbas Kiarostami, porque aborda com especial despojamento, sem moral nem censura, um dos temas mais complexos da psicologia humana: o suicídio. É um tema que me atrai muito, um tema que sempre me atraiu muito, e que no filme de Kiarostami acaba por ser encenado de uma forma até algo "cómica". Curiosamente, sempre que revejo o filme fico com mais vontade de viver. Talvez para volta a vê-lo.
Escolho Ossos em representação do cinema português, um cinema mal tratado pelo público português – verdade que, muitas vezes, também mal tratado pelos cineastas portugueses -, mas que nos oferece, de tempos a tempos, um filme de génio. Pedro Costa é um artista, um poeta das imagens, não é apenas um contador de histórias como se limitam a ser muitos realizadores. Ossos mostra-nos o esqueleto de uma sociedade em ruptura, à beira de um abismo que não assumimos como quem não quer assumir que tem um tumor ao mesmo tempo que o olha na radiografia.
Depois há a guerra, a situação limite, filmada n’A Barreira Invisível com uma poesia única, original, deslumbrante. A Barreira Invisível, de Terrence Malick, é o meu tratado existencialista, um filme repleto de dúvidas, as mesmas dúvidas que andamos a colocar desde que colocamos dúvidas. Tudo passa pela barreira invisível, num cenário que é, como disse, o mais limite dos cenários - por isso mesmo aquele que melhor nos interpela quanto à nossa razão de ser. Afinal, as três velhas questões: quem somos? de onde vimos? para onde vamos?
E, para terminar, um filme de Takeshi Kitano. Sou fã do cinema oriental, assim como o sou de alguma poesia e de muitas outras coisas lá dessas bandas. Dolls tem tudo o que aprecio lá desses orientes onde nunca estive senão por meio da arte e da imaginação. É verdade que nós vivemos sempre cheios de mitos quanto àquilo que não conhecemos. Mas como já tenho dito por aqui, deixem-nos lá viver com os nossos mitos. O meu mito é o mito do amor. É o mito de que, apesar de tudo, ainda vale a pena andar por cá. Porque é por cá que o amor existe, mesmo quando envolto num manto de tristeza e de melancolia. Mas o amor é isso, não é?

Passo a palavra, com muito gosto e porque gostaria mesmo muito que respondessem, ao José Miguel Silva (Sanshô Dayu, O Intendente Sanshô, Sanshô, the Bailiff, Sansho Dayu – Ein Leben ohne Freiheit, L'intendente Sansho - e com muita razão, digo eu), ao Filipe Guerra (só lido...), à C (Zéro de conduite, Simon del desierto, Le Procès de Jeanne d'Arc, Scénario du film Passion), à Alexandra (Mouchette, Uma Visita ao Louvre, Conto de Inverno, Livro de Cabeceira, O Último Ano em Marienbad) e ao Lourenço (E.T., Lost Highway, Morangos Silvestres, Ikiru, Apocalypse Now).

15.11.07

MOMENTOS EM TEMPO REAL: EXTERIORES

Hoje. Usando o Insónia como janela.

Novas oportunidades.

Dois trabalhadores portugueses.

ENCONTRAR A MORADA

O mais alto momento da minha vida passou-se debaixo da terra, nas grutas de Mira de Aire. Havia lá um barquito de madeira onde, a meio de uma excursão, resolvi esconder-me. Fiquei sozinho na gruta, desaparecido, deixando preocupadas as pessoas que estavam a tomar conta de mim. É um momento alto da vida sabermos que há pessoas que tomam conta de nós que podem ficar preocupadas com o nosso desaparecimento, mas mais alto ainda é sentirmo-nos, posteriormente, achados e constatarmos no alívio dos outros o transtorno que lhes causou a nossa ausência. Há pessoas que desaparecem só para se sentirem desejadas, pessoas que se tentam matar como quem aposta um amor incerto, há pessoas que julgam revigorar uma paixão indo uns tempos para fora, dando um tempo, partindo com a certeza de um regresso. O momento mais alto da minha vida foi ter percebido esse fenómeno a vários metros de profundidade. Ter ficado para ali sozinho, debaixo da terra, abriu-me algumas perspectivas sobre o que possa ser viver sozinho debaixo da terra. Nada desagradável, acreditem. Só nos irrita o eco, um eco tão sensível que até nos devolve a respiração. Debaixo da terra a respiração é como um vapor que nos sai do corpo, uma espécie de nevoeiro matinal. Posso acrescentar que o facto de ter passado umas horas longe de tudo e de todos debaixo da terra neutralizou-me certo tipo de ambições que observo serem muito comuns na maioria das pessoas. Por exemplo, a ambição de uma companhia. Só quem nunca esteve verdadeiramente sozinho pode ambicionar uma companhia como se uma companhia fosse a solução de todos os problemas que um homem transporta dentro de si. Estar em companhia é estar à mão da paranóia, é murmurar a preguiça para que ela não se note, é disfarçar as impurezas com promessas desmaiadas. Sou dos que partem do princípio que todos os homens são impuros, embora uns lavem as mãos com mais cuidado que outros. Sou dos que não acredita senão na transformação interior, assim como quem passa por uma experiência alta a vários metros de profundidade. Seguro um ninho sobre as mãos e penso no que sentirão os fantasmas dos pássaros quando me observam a segurar um ninho nas mãos. É provável que pensem, se pensar for próprio dos fantasmas dos pássaros, que lhes seguro a liberdade. Mas a liberdade têm eles nas asas, a liberdade não é o que nos protege dos outros, é antes o que nos torna nucleares entre os outros, a liberdade dos pássaros não é o ninho onde se protegem, é as asas com que migram. Por isso detesto ninhos, prefiro ficar escondido num barquito de madeira sonhando com grupos de pessoas preocupadas à minha procura. Um homem tem que ter sonhos, não se vive sem sonhos. Apenas se existe. O meu sonho é esse: que um dia alguém ande por aí preocupado à minha procura. Por isso mergulho tanto nas implosões, como um estilhaço liquefeito, à espera de sentir no ar as chamas de quem murmura a dor da nossa ausência. Confesso que não estou desapiedado de todo. Tenho até alguma sorte. De vez em quando rebentam-me beijos no rosto, como se fossem gorjetas, é certo, mas sempre mais vale. Se um tipo se predispõe a cantar na rua é bom que façam cair a gorja. Porém não engano a minha morada: é de breu, simples como uma porta que range, sempre a deixar passar para dentro e para fora a sombra dos ecos, os uivos sombrios, aquela coisa de se dizer como se a vida fosse isso «tudo bem? sim tudo bem». A minha morada, já sabem, é a muitos metros de profundidade dentro de um barquito de madeira. E confesso não estar muito interessado em remar pelos outros. Haja apenas quem me procure com preocupação. Outra coisa não tenho feito por quem amo verdadeiramente.

O RICO CLANDESTINO

Ainda há muito pouco tempo fui aliciado para rumar directo a Angola, onde me aguardaria um trabalho muuuuuuiiiiiito bem pago, fácil, em cargo de chefia, com direito a segurança e tudo e tudo e tudo. Na minha zona há muita gente a aproveitar o forte crescimento económico que tem sido verificado nos últimos anos em Angola. Dizem que «aquilo lá é que está bom», apesar de nada haver além de excelentes oportunidades para ganhar muuuuuuiiiiito dinheiro. As pessoas que conheço e aproveitam vão para dois meses, como turistas, trabalham, ganham mais do que alguma vez ganhariam cá num ano de trabalho, regressam a Portugal para, passados mais dois meses, voltarem novamente a Angola em regime de turistas. Trabalhadores clandestinos, pois claro, mas muuuuuiiiiiiiito bem pagos. Quando fui aliciado para experiência similar, a pessoa que falou comigo disse-me que estavam incluídas nas despesas a serem pagas tudo o que eu tivesse de gastar em gasosa. Eu sorri e, na minha ingenuidade de jovem burguês, perguntei se estava a pessoa a referir-se aos custos com a gasolina. Ao que ela também sorriu - nestes assuntos somos todos sorrisos e alegria - e explicou-me o que assim vem explicado no post para onde vos envio: «O fluxo repentino de recursos tornou a corrupção endêmica. A cultura de pagar 'gasosa' (literalmente, refrigerante) para policiais e funcionários públicos está enraizada. Angola, no ano passado, foi considerada pela ONG Transparência Internacional o 34.º país mais corrupto do mundo, entre 180.» É assim mesmo, vamos para clandestinos mas com a certeza de que nada nos faltará para que possamos ser corruptos de primeira. Aproveitem, quem sabe daqui a uns anos não serão vocês grandes coleccionadores de arte.

LIBERDADE DE EXPRESSÃO NO MUNDO CIVILIZADO


El juez impone una multa de 3.000 euros a cada uno de los dos autores de la caricatura de los Príncipes

14.11.07

O FIM DO EROTISMO

Fritávamos cinquenta quilos de batatas para o dia seguinte, porque depois não teríamos tempo. Era no tempo das arcas de madeira, forradas com um tecido impermeável, cheias de gelo, para a cerveja ficar fresca. Já havia uma máquina de café, na qual ficávamos de plantão das sete às quatro. Cinco dias sem dormir, sempre a servir bifanas, cafés, sandes, copos de vinho, cervejas, petiscos. Fazíamos também grandes panelas de dobrada. O povo chegava de carroça, nos autocarros, a pé, de bicicleta. Alguns já vinham de carro, mas eram poucos. E pelo caminho cada casa era um tasco onde a malta parava para beber mais um… para o caminho. De tudo se vendia aqui. Roupa, instrumentos para o trabalho, plásticos, animais, água. A malta que tinha poços vendia bilhas de água. E houve também quem vendesse passos de dança, memórias feridas, esse reboliço todo a esvanecer para dentro das paredes de uma grande superfície comercial. Agora é mais higiénico, mas muito menos erótico.

OS PADRES DE PARIS

Os padres em Paris são os padres de Paris.
Os pretos, a passos largos pela rua, sempre correndo
para qualquer parte, sempre com um objectivo,
alguns com chapéus como pratos, alguns de solidéu,
alguns da cachola rapada,
alguns levando malas cheias de importantes documentos
relativos à distribuição das almas,
alguns com as mãos postas sob as suas capas negras,
fazendo invocações com os dedos a conjurar
novas almas;
roupas negras batendo dos padres de Paris quando
passam nos seus recados urgentes.
Por baixo das suas roupas de carvão guardam os secretos
propósitos da cidade, guardam o delicado
pólen da felicidade,
para que Paris possa florescer e agitar suavemente as
suas folhas ao ar lento, que as suas raízes brancas
de carne possam estar húmidas,
sob a terra escura das vestes dos padres estes conservam
os sucos profundos, guardando-os, intencio-
nalmente alimentando-os,
nos seus recados, quando passam, e ninguém lhes
fala, ninguém olha para eles,
como fingindo que não eram necessários, como
fingindo que Paris pode florescer sem
eles, como fingindo que o seu objectivo
é um céu qualquer distante
não-parisiense.

Tradução de Manuel de Seabra.


Gael Turnbull

Gael Turnbull nasceu a 7 de Abril de 1928 em Edimburgo, tendo vivido posteriormente no norte de Inglaterra, Canadá e EUA. Formou-se em medicina pela Universidade da Pensilvânia. A sua poesia era publicada inicialmente sob a forma de panfletos, os quais terão surgido no início da década de 1950. Em 1957 fundou a Migrant Press, dando à estampa várias antologias de poetas modernos. Faleceu no dia 2 de Julho de 2004. Dois anos depois a sua poesia foi reunida em There Are Words.

13.11.07

O nosso tesouro? O vinho.
O nosso palácio? A taberna.
Os nossos fiéis companheiros? A sede e a embriaguez.
Ignoramos a inquietude, porque sabemos que as nossas almas
corações e taças e as nossas roupas maculadas nada têm a temer
do pó, da água e do fogo.


Tradução de Fernando Castro.

Omar Khayyam

Omar Khayyam nasceu em Nishapur, Pérsia, a 18 de Maio de 1048. Poeta, matemático, geómatra e astrónomo, é conhecido como autor das Rubaiyat – pequenas composições em verso de cariz hedonista. O primeiro aparecimento das Rubaiyat na cultura ocidental deu-se através das versões do poeta inglês Edward Fitzgerald (1859). A vida de Omar Khayyam está envolta em várias lendas, desde a sua relação secreta com a seita dos Assassinos ao distanciamento da ortodoxia muçulmana. Certo é ter sido discípulo de Avicena e ter sido autor de um novo calendário muçulmano. Terá morrido a 4 de Dezembro de 1131.

NUSRAT FATEH ALI KAN

Por mim até podia passar o tempo todo só a dizer Allāh. Se alguma coisa há-de ser a ideia de Deus, que seja o som da voz de Nusrat Fateh Ali Kan.

O INCIDENTE

A minha reflexão sobre o incidente mereceu um comentário do GAF. Devo dizer que depois de muitas horas a perscrutar o incidente, cheguei à conclusão que ora repito: «A intervenção do Rei de Espanha ficará apenas para a política internacional como a agressão de Scolari a um jogador sérvio ficou para o futebol europeu.» Para aqui ter chegado foi necessária toda uma reflexão profundíssima, horas e horas de pensamento, da qual não estou disposto a dar mão. A verdade é que, e sem cinismo, toda a comparação pode ser interpretada de muitas maneiras. A minha intenção era simples: não vejo gravidade no incidente que justifique tanto alarde. Repito que não me parece que o rei tenha mandado calar Chávez (só chamei suíno ao suíno duas vezes, caro GAF, e não foi como argumento político; seja como for, remeto-o para outros posts insones sobre suinicultura (aqui e aqui) para que possa entender ser a minha relação com o animal triunfante, de facto, algo traumatizada). Gostava que o rei tivesse mandado Hugo Chávez calar-se para que, pelo menos, se justificasse o alarido. Como não o fez, o que me parece é que há mais vontade de conversa que outra coisa. No entanto, há reacções interessantes que merecem um comentário: como a de que o índio não se deixou calar por um Bourbon. É uma reacção muito interessante, na medida em que não resiste a interpretar o incidente senão à luz das peculiaridades “genéticas” dos implicados. Trata-se de um preconceito muito curioso, pois aponta para a impossibilidade de um julgamento indiferente, como se todos os factos políticos, hoje em dia, só pudessem ser interpretados e julgados à luz da história que pesa sobre as costas dos implicados. Especulo: e se o rei fosse um índio da América do Sul e Chávez o presidente de uma potência ex-colonizadora? Que o rei seja branco e lhe pese a história no costado, que o presidente seja vermelho e lhe saltem da boca perdigotos de déspota cada vez que fala, deverá ser reduzido ao facto de um ter sido colonizador e o outro colonizado? Bem, se formos por aí, que se calem já todos. Sinto-me eu no direito de vos mandar calar, pois que, não sendo solteiro, sempre fui bom rapaz, nunca fiz mal a ninguém, tenho as mãos tão limpas, apesar das micoses, como as de Pilatos aquando do julgamento do Senhor, só sou português por acidente. Chávez não presta, é um ditador. E não é por muitos daqueles a quem ele chama nomes também não prestarem que ele me merecerá alguma consideração. Nada naquele incidente me conforta ou consola, muito menos o andar-se a perder tempo com o mesmo.
Adenda: ler, sobre este assunto, Tiago Barbosa Ribeiro aqui, aqui e aqui.

ORIENTAL.9

é assim que se desfaz
um ai
cu


Alcides

12.11.07

JUAN CARLOS E SCOLARI

A abordagem jornalística ao famigerado incidente na Cimeira Ibero-Americana é típica do mundo em que vivemos. Diz-se que o Rei Juan Carlos mandou calar Hugo Chávez, mas ou a minha capacidade de percepção está gravemente deteriorada ou não foi nada disso que sucedeu. Enquanto Zapatero tentava, num registo paternalista do tipo Paula Bobone, dar uma lição de moral e de etiqueta ao suíno Chávez, este interrompeu-o para reafirmar uma das patacoadas que já tinha disparado e sublinhar que dizia o que bem entendia e como entendia onde quer que entendesse. Foi na sequência da interrupção que o Rei Juan Carlos, perdendo também ele a compostura, perguntou a Chávez: «Por que não te calas?» A pergunta talvez devesse ser interpretada no sentido de “espera lá um bocado, pá, não interrompas quem está a falar”, o mesmo sentido que se escuta na voz que julgo ser a da moderadora da cimeira, mas foi interpretada como um gesto assertivo do rei que, segundo a imprensa, terá mandado calar Chávez. Ora, não creio que tenha sido essa a intenção do rei, embora pudesse ter sido essa a sua vontade. Na verdade era Chávez quem estava a pedir que o mandassem calar. Aliás, há muito que o suíno Chávez denota uma certa cumplicidade com gestos do género. Ele, que tanto gosta de mandar calar os outros, apenas se limitou a pedir que alguém o mandasse calar a ele. O Rei Juan Carlos esteve perto de lhe fazer o favor, pena que o não tivesse feito de facto. A intervenção do Rei de Espanha ficará apenas para a política internacional como a agressão de Scolari a um jogador sérvio ficou para o futebol europeu. Decepcionante.