29.7.06

férias

Aladdin empurra na corrida
as mesas da esplanada turística ao vivo.

O alemão, o francês, o americano, o suíço e o inglês
perseguem-no até ele entrar na ponte, o português David
fica na esplanada, sorri à morena carlsberg
de boca fria nas suas pernas e usa o telemóvel.

Alladin atravessa a ponte, rindo.

Mais à frente o cristo-rei parte-o ao meio.

Nuno Moura

Que flor serias, se fosses uma flor?

Lembro-me de escutar a minha mãe que se eu fosse uma flor, seria uma hortênsia. Perguntei-lhe porquê. Explicou-me que as hortênsias murcham com muita facilidade quando cultivadas em espaços exíguos. Apreciam locais espaçosos, de preferência montanhosos, campos abertos e climas temperados. Desconheço a verdade da descrição, mas sou incapaz de duvidar de minha mãe. Também não importa. No entanto, senti algum desconforto com a comparação. Julgava-me talhado para espaços fechados e climas dissonantes.

Optar pelo deserto

Quando vivi na cidade apercebi-me de que as pessoas, apesar de mais próximas no espaço, podem viver distantes no olhar. Mais grave é o facto de viverem amiúde com um olhar de fome, ganancioso, insuportavelmente irónico e prestidigitador. Para um simplório como eu nada há como poder falar sem muletas atrás das palavras, poder olhar nos olhos o que outros olham por cima do ombro e, no meu fado de hortênsia, ter vastos campos abertos onde possa passear-me desnudado sem que me apontem o dedo inquisidor da presunção. Talvez por isso tenha optado pelo deserto para viver.

QUISERA ESTAR SÓ NO SUL

Talvez meus lentos olhos não vejam mais o sul
De ligeiras paisagens adormecidas no ar,
Com corpos à sombra de ramos como flores
Ou fugindo num galope de cavalos furiosos.

O sul é um deserto que chora enquanto canta,
E não se extingue essa voz como pássaro morto;
Para o mar encaminha os desejos amargos
Abrindo um eco débil que vive lentamente.

No sul tão distante quero estar confundido.
A chuva ali não é mais que rosa entreaberta.
A própria névoa ri: um riso branco no vento.
Obscuridade ou luz, ali são belezas iguais.


Tradução de Eugénio de Andrade.

Luis Cernuda

Luis Cernuda nasceu em Sevilha no dia 21 de Setembro de 1902. Na década de 1920, após estudos de Direito, mudou-se para Madrid. Na capital espanhola familiarizou-se com o ambiente literário da chamada Geração de 27. Do grupo faziam parte, entre outros, Federico Garcia Lorca, Rafael Alberti e Jorge Guillén. Cernuda era o mais jovem de todos eles. Durante a Guerra Civil participou no II Congresso de Intelectuais Antifascistas de Valência, exilando-se posteriormente em Inglaterra, Escócia e México. Publicou o primeiro livro, Perfil del Aire, precisamente em 1927. Seguiu-se Un rio, un amor (1929), fortemente influenciado pelo surrealismo. Foi também autor de vários ensaios literários e colaborador de diversas revistas e jornais mexicanos. Morreu na cidade do México em 1963.

Bloco de apontamentos # 40

Sem Título
MJLF, S/título, técnica mista s/papel, 15x10cm, 2005
Desde que fui promovida a contralto de segunda, deixei de ouvir os barítonos por detrás de mim. Sempre gostei de barítonos, dão boas massagens nas costas, sobretudo quando estudaram algum instrumento harmónico desde pequenos; mas agora compreendo como lhes é difícil estar na linha, os portugueses médios são quase todos tenores abaritonados ou barítonos atenorados; cantar com um verdadeiro som grave nas costas tornou-se uma referência de afinação que eu desconhecia antes da actual promoção, agora sinto-me inserida num todo com muito mais rigor, que é o mais importante na interpretação da música de câmara. Além disso, um bom baixo é sempre apreciador das coisas boas da vida, os barítonos são apenas gulosos.

Maria João

28.7.06

Fragmento #36 – Anjo Verde

Os dias ardiam espapaçando os miolos dos humanos que ainda se encontravam vivos na terra. Os vivos resguardavam-se do amarelo diurno dentro das suas habitações fechadas e frescas. Os dias eram longos demais e pareciam não ter fim. Quando a noite caía, finalmente, uma brisa suave invadia os seus corpos, dando-lhes coragem para percorrerem as ruas das cidades em busca de algum abrigo, onde pudessem desfazer-se em cerveja e suor. O careca absurdo era um desses seres. Ele aterrara na sua cidade natal depois de uma prolongada ausência. Ele partiu porque foi obrigado a dizer que não a quem o pariu, mas o destino tem destas coisas, recambiaram-no para a pátria. A sua careca luzia no escuro, era um globo luminoso. Chegara a hora da caça e a brisa refrescava-lhe os miolos ardentes. Foi então que viu um anjo verde que lhe disse:
- Não tenhas medo das piranhas, elas não mordem.
A careca começou a luzir como nunca:
- Pois não, anjo verde, eu não tenho nada e apenas existo.
O anjo afastava os transeuntes com gestos largos e enérgicos:
- Há que enxotá-los a todos, cheiram mal dos sovacos. Tu não cheiras mal e tens o mundo dentro da tua cabeça. O que estás aqui a fazer?
O careca ajoelhou-se e numa vénia respondeu-lhe:
- Fui parido por uma muralha e voltei para a acompanhar até à sua morte.
O anjo verde pousou as mãos na sua cabeça e disse:
- Queres ficar aqui a deambular nas ruas como um morto-vivo? Bebe antes um cálice do meu sangue.

Maria João

27.7.06

Bloco de apontamentos # 39

MJLF, S/título, acrílico s/gesso, 1996.

Tenho um amigo muito querido que me pediu em casamento depois de provar o meu bolo de chocolate. Ele propôs-me uma espécie de contrato em que eu poderia fazer tudo o que quisesse, até ter amantes, mas o bolo tornava-se exclusivo dele, só ele é que o comia. É claro que é uma proposta feita por um barítono, por isso não se pode levar a sério. No entanto, quando ele viu as minhas últimas esculturas achou-as semelhantes aos bolos que cozinho. Prefiro não saber que exclusivo é que ele quer.

Maria João

PIOLHO LÍRICO

- O Ribeiro teve um arroubo lírico no Café Piolho às 23.15.
- Tenha cuidado o senhor está com um pezinho fora da realidade.
- Cada café tem o seu próprio sistema chular.
- O senhor meu amigo é um canalha.
- Os ratos que fazem experiências com cientistas não respeitam o princípio da proporcionalidade.
- Oh.
- Eu acho que somos todos cada vez mais amigos uns dos outros.
- Vou para casa pensar.
- Perdeste o controle outra vez!
- Honestidade: incapacidade para sofrer sozinho.
- É uma pessoa com algumas dúvidas.
- Brigitte, la femme-plus!
- Pinto a paixão com a paixão de pintar.
- Fode-te.
- Perdeste o controoooooole!
- Rita hoje morro sozinho.


Rui Costa

mª joão fernandes, diálogos com camões

26.7.06

PÁSCOA EM NOVA IORQUE

(fragmento)

Senhor, quando Vós morrestes, o pano fendeu-se,
O que estava por detrás, ninguém o disse.

Na noite a rua é como se fosse uma ferida,
Cheia de ouro e sangue, de fogo e lixo.

Os que Vós expulsastes do templo a chicote,
Agridem os transeuntes com um punhado de patifarias.

A Estrela que desapareceu então do Tabernáculo,
Arde pelas paredes na luz crua dos espectáculos.

Senhor, o banco iluminado é como um cofre-forte,
Onde foi coagulado o Sangue da vossa morte.

Tradução de Liberto Cruz.

Blaise Cendrars
Blaise Cendrars, pseudónimo literário de Frédéric-Louis Sauser, nasceu suíço no dia 1 de Setembro de 1887. Filho de um homem de negócios, cedo se habituou à vida de andarilho. Conta-se que aos 15 anos terá fugido de casa, depois de o pai o ter fechado num quarto na sequência de um castigo motivado por vários escândalos. Em 1906 encontra-se em S. Petersburgo, onde leva uma vida miserável. Três anos depois parte para Berna, onde segue um curso universitário. Já em 1911 parte para Nova Iorque, com a intenção de se juntar à sua amada. Em Julho de 1912 instala-se em Paris onde lança Les Hommes Nouveaux. No mesmo ano publica Les Pâques à New York. Em 1915 perde a mão direita na guerra e, dois anos depois, amputam-lhe todo o braço. A vida de Blaise Cendrars foi uma constante aventura, com viagens pelas sete partes do mundo e outras tantas ocupações para ganhar a vida. Condecorado com a Légion d’Honneur por André Malraux, no ano de 1958, faleceu em 1961 na sequência de vários ataques.

Bloco de apontamentos # 38

Inimigas
MJLF, Inimigas, técnica mista s/papel, 21x35cm, 1995

Vou ter de substituir uma verdadeira contralto em concerto. Quando o maestro me atribuiu a tarefa, olhei para a partitura e comentei: pois é, isto é grave. Eu que sou uma mezzo com bons graves vou ter de fazer solos de contralto. Voltei-me para a contralto que vai estar ausente no concerto e disse: parece que vou ser a tua substituta. Ela respondeu-me: antes isso do que seres mesmo prostituta.
Maria João

25.7.06

«Movimentos que tendem genuinamente para a manutenção da paz deviam ser todos recebidos de braços abertos, sem nos preocuparmos em saber primeiro se as suas tendências se inclinam para a direita ou para a esquerda.»
Bertrand Russell

Fica a citação a letra bem grossa, para que os grunhos, ignorantes, iletrados, facciosos que por aqui passam percebam, de uma vez por todas, o que é "acender velas" "pela paz". (É favor seguirem os 2, repito DOIS, links.)

Cara Carla Hilário de Almeida Quevedo,

Sobre a guerra (houve quem lhe tivesse chamado coerção estratégica), já disse tudo o que tinha a dizer (1, 2, 3, 4, 5, 6, 7). Mais que isto, para mim, será espectáculo para o qual não vou contribuir. É inútil, desgastante, promíscuo até, manter esta discussão. O mundo está-se nas tintas para o que a Carla pensa e muito mais para o que eu penso. Mas não posso deixar de lhe responder, encerrando o diálogo, sob pena de pensarem que quero fugir à discussão. A Carla afirma: «A actos de guerra responde-se com actos de guerra. Por isso o conceito de desproporcionalidade é mera poeira hipócrita que anda por aí a circular.» O que é um acto de guerra? Destruir pontes (55 em 10 dias), aeroportos (3), depósitos de combustível (17) e bombas de gasolina (12), ambulâncias, ontem Paulo Camacho falava de uma fábrica de papel higiénico, já havia sido mencionada uma outra de produtos lácteos, acessos balneares, hospitais (3), matar civis (400?), bombardear um posto dos observadores das Nações Unidas, provocando a morte a quatro funcionários onusianos, etc... «Entre os civis mortos estavam 13 estrangeiros», por certo cúmplices ou mesmo guerrilheiros do Hezbollah. Tudo isto se justifica, portanto, pelo fim: acabar com os porcos fundamentalistas que há muito espalham o terror na região. Pensemos agora que aquilo que vale para uns, valerá para todos. Pela sua perspectiva o ataque ao World Trade Center deverá ser interpretado como apenas mais um acto de guerra. Como tal, perfeitamente compreensível no contexto de uma guerra que se perpetua há décadas. «A actos de guerra responde-se com actos de guerra.» Não é assim? Já agora, acabemos com tudo o que seja "crime de guerra". Que tudo seja permitido, até arrancar olhos, extirpar crianças inocentes, condenar populações inteiras ao isolamento e à miséria. Abu Ghraib? Um claro e inequívoco acto de guerra. Terrorismo ou acto de guerra? Qual a diferença? Eu apenas acredito que nem todos os meios são legitimáveis pelos fins em si. Por isso mesmo considero os “guerreiros santos” do Hezbollah e de outras organizações similares uns filhos da puta que só merecem desaparecer da face da terra. Sabe porquê? Porque acho que os tipos que entraram «na rua Bem Yehuda, cheia de outros jovens judeus no fim do Sabbath, e detonaram granadas que tinham presas à cintura» (tradução de Carla Hilário Quevedo) não estavam apenas a praticar um acto de guerra. Assim como julgo que destruir pontes (55 em 10 dias), aeroportos (3), depósitos de combustível (17) e bombas de gasolina (12), ambulâncias, ontem Paulo Camacho falava de uma fábrica de papel higiénico, já se tinha mencionado uma outra de produtos lácteos, acessos balneares, hospitais (3), matar civis (400?), bombardear um posto dos observadores das Nações Unidas, provocando a morte a quatro funcionários onusianos, etc., não são apenas actos de guerra. Por estas razões «o conceito de desproporcionalidade» não pode, nem deve, ser considerado «mera poeira hipócrita», sob pena de tudo passar a valer. Curiosamente, a própria Carla não escapa, com o seu discurso, à (i)lógica do terror do Hezbollah: «se fosse útil e de facto explodisse, tenho a dizer-lhe que iria. E como boa bomba, cairia em cima dos refúgios do Hezbollah». É esta a retórica (ilógica) dos “guerreiros santos”. Para terminar, gostava de chamar a atenção para este post de Luís Carmelo. É sintomático da inutilidade desta discussão, pela demagogia e retórica fáceis, de tipo maniqueísta (a norte e a sul), que viciam logo à partida qualquer debate. Cito: «Há dois anos, a propósito do genocídio de Darfur, onde estava a acutilância feérica dos que hoje quase silenciam o Hezbollah e diabolizam o que designam por “desproporção”?» A esta pergunta tipo Baptista Bastos, tentei responder com objectividade:: «Ainda há bem pouco tempo, quando Portugal jogava, o zé dormia e o Carmelo escrevia sobre o tom dos weblogs, eu deixei isto no meu canto: http://antologiadoesquecimento.blogspot.com/2006/06/calma-gentes.html. Mas como é óbvio, os que contam são os que nos convêm». Quem conta para Carmelo? O Causa Nossa. Porquê? Porque é desproporcional na indignação que manifesta: «Compare-se o sintomático Causa Nossa, há dois anos, quanto ao caso de Darfur, e agora no modo como encaram o papel de Israel.» Que dizer de tanta argúcia argumentativa? Talvez que «o mal reside no temperamento dogmático, e não nas características especiais do dogma adoptado».
Adenda: foi feito um acrescento na parte do post relativa ao inventário de actos de guerra israelitas.

Vós olhais as flores no meio das folhas:
Quanto tempo de bom podem elas ter?

Hoje temem que alguém as colha
Amanhã aguardam que alguém as varra

Cativantes os entusiasmos do coração
Após vários anos envelhecem

Comparado com o mundo das flores
O fulgor do vermelho como o conservar?


Versão de Ana Hatherly.

Han-Shan

Han-Shan foi um poeta chinês que terá vivido no século VII. O seu nome está associado ao budismo Zen, sendo-lhe atribuídos 311 poemas. O tradutor Arthur Waley introduziu-o no mundo anglo-saxónico em 1954. Dois anos depois, o poeta beat Gary Snyder traduziu e publicou 24 poemas de Han-Shan na revista Evergreen Review. Conta a lenda que Han-Shan (Montanha-Fria) tomou o nome da montanha onde instalou um retiro. Embora fosse referido nos Novos Anais dos Tang e apreciado até ao século XI, foi praticamente ignorado do século XII ao século XVII. Apaixonado pela liberdade, entregou-se a um trabalho interior de solidão sem se deixar tentar pelas rotinas das religiões ou das filosofias estabelecidas. (a partir de O vagabundo do Dharma – 25 poemas de Han-Shan, Cavalo de Ferro, Outubro de 2003)

Bloco de apontamentos # 37

MJLF, Poema-ai, 1997
O pior acto falhado que tive em concerto foi cantar "a saudade é um luxo" em vez de "a saudade é um luto". Levei uma cotovelada da segundo soprano que estava ao meu lado. Vocês nem imaginam o que é ter de levar com uma soprano de segunda, ela até parecia uma soprano dramática. Pensando bem, a saudade é mesmo um luxo.
Maria João

24.7.06

Via Natureza do Mal

SHAHID

Recupero um post com dois anos: a minha agenda não tem no índice das prioridades qualquer tipo de luta contra a guerra da ganância. Nada posso fazer contra essa guerra. Todos os meus actos, todas as minhas manifestações, serão inconsequentes contra essa guerra. Parto do princípio que todas as guerras, no sentido bélico do termo, são estúpidas, pelo simples facto de procurarem resolver pela força o que os homens não lograram resolver pela razão. Não vislumbro qualquer tipo de motivos, intenções e finalidades que justifiquem moralmente a destruição e o assassínio. Vislumbro apenas a ganância, a inveja, a ânsia de poder. Mas há guerras menos estúpidas que essas. São guerras onde todos podem sentir-se consequentes. Não enchem tantas páginas nos jornais, não inspiram tantos fazedores de opinião, nem conseguem tanta gente nas ruas. No entanto, são bem mais fundamentais que as outras. Muitas vezes, a negligência a que estão sujeitas transforma-as em pretexto para as outras. Refiro-me às guerras contra a fome, contra a pobreza, contra a miséria, contra a ignorância. Alguns colunistas julgam ser imbecil, ingénuo, infantil, pueril ou mesmo lamechas bater na tecla dessas guerras. Mas esses colunistas comem todos os dias, têm casa onde dormir e são pagos para bazofiar os últimos avanços na tecnologia da destruição, a inteligência das armas, a contagem das vítimas, os danos colaterais. São pitagóricos modernos. Para eles tudo é número. Na minha agenda, a prioridade será sempre a guerra da carência e do desamparo. Nunca a guerra da ganância e do poder. Acrescento: se ser a favor da paz é ser pueril, então quero ser pueril; se mostrar uma atitude pacifista é ser ingénuo, então quero ser ingénuo; se não embarcar na frieza das análises racionalistas, de comando na mão e à distância, é ser infantil, então quero ser infantil. Quero guardar para sempre dentro de mim essa infantilidade que outros recusam. Prefiro recusar a maturidade daqueles para quem tudo deve ser visto sob o prisma contabilístico do deve e do haver. Não contem comigo para a festança da morte. Os inteligentes deste mundo que se sirvam da desgraça para exibirem suas teses, que façam livros, vendam muito, que se promovam, que festejem os êxitos, que digam os maiores disparates como se alguém ligasse alguma coisa àquilo que dizem. Não contem comigo para esses bailados. O meu grito é outro. Talvez Meira Asher tenha alguma coisa a dizer sobre o assunto. Perante as imagens que nos entram em casa, a sua música é mel para os nossos ouvidos.

Cara Carla,

Quanto ao Hezbollah estamos de acordo. Eu acrescentaria mesmo tratarem-se de uns filhos da puta (sem ofensa para as putas deste mundo) que só mereciam desaparecer da face da terra. Mas, como a Carla tão bem nota, «sem provocar danos colaterais, nem eliminar libaneses inocentes». Se a Carla, ou alguém deste mundo e do outro, conseguir provar que os que estão a ser eliminados albergam terroristas (muita coisa se alberga por aí!), até lhe darei razão nas suas conclusões (os números, para já, são bastante confrangedores: 6 guerrilheiros do Hezbollah para cerca de 400 civis). Mas olhe que temo estar a lançar-lhe um desafio do tipo "Onde está Wally?". Ou, quem sabe, num imbróglio do género das armas de destruição em massa iraquianas que nunca apareceram. Já agora, pense nisto (se estiver para aí virada): se tudo o que está a acontecer se justifica pela intenção de destruir os filhos da puta do Hezbollah, por que só agora se lembrou Israel de o fazer? O Hezbollah, e os hospedeiros libaneses, só passaram a ser uma ameaça depois de terem raptado 2 soldados israelitas?

23.7.06

Acerca do chamado «conceito mais estúpido dos últimos tempos»

Pergunta Paulo Gorjão: «Mas, já agora, o rapto de três militares pelo Hezbollah foi proporcional relativamente ao quê?» O mundo abana e a guerra pára. Perguntas destas, meus amigos, só mesmo a milhares de quilómetros de distância (serão tantos?) do sofrimento dos outros. A mim impressiona a agilidade no raciocínio, a frieza do analista, a argúcia na deixa, o jogo de anca do opinador, a racionalidade da morte. Tudo isto me impressiona. Mas eu gosto mesmo é de poesia, essa matéria de rodapé para declamação à hora da sobremesa. Ó gente tão sábia, ó mundo tão ingrato, por que não dais a estes homens o que eles verdadeiramente merecem: rockets à porta de casa quando passeiam o cão.
«Segundo um balanço provisório do ministério da Saúde do Líbano, divulgado ontem de manhã, morreram 396 pessoas nos últimos onze dias, e 1350 ficaram feridas. Entre os mortos a esmagadora maioria eram civis, 20 eram soldados libaneses (o exército não está a combater mas foi atingido por raides) e apenas 6 guerrilheiros do Hezbollah. Entre os civis mortos estavam 13 estrangeiros: oito cidadãos do Canadá, dois do Kuwait, um do Iraque, um do Sri Lanka e um da Jordânia.
Do lado israelita, morreram 19 soldados e 15 civis, estes atingidos pelos rockets Katyusha que são diariamente lançados, às dezenas, para Norte de Israel. Ontem o disparo de salvas de rockets aumentou, com cerca de 160 projécteis a caírem - nos dias anteriores a média era de 60 a 70 rockets por dia - e a deixarem dezenas de feridos, incluindo dois com gravidade, um em Safed e outro em Carmiel, segundo a edição on-line do diário hebraico Ha'aretz.» (Público, Domingo, 23 Julho)
Perante isto, que dizer acerca do «conceito mais estúpido dos últimos tempos»? Que esperamos sinceramente ir a nossa bomba inteligente incluída no «pacote multimilionário» de bombas inteligentes que a «Administração Bush está a apressar-se para fazer chegar» a Israel. É para lá que devem ir, quanto antes, todos os nossos patéticos heróis!

Bloco de apontamentos # 36

O Vinho
MJLF, O Vinho, técnica mista s/papel, 30x21cm, 1995

Quando se caminha em direcção ao norte vêem-se montanhas azuis que se fundem no horizonte. É claro que parecem irreais perante a actual política da terra queimada, tão presente na paisagem do nosso país.

Maria João

22.7.06

Artigo 1878º do Código Civil

Compete aos pais, no interesse
dos filhos, crianças à beira do ar,
velar pelas cores prodigiosas, saúde
e segurança destes, prover ao seu
sustento, dirigir a sua educação – a
faca na cicatriz do tórax – representá-los,
ainda que nascituros, e administrar
os enxames das imagens, estrelas,
vermelhas, extremas.

Rui Costa

Da inocência

José Miguel Silva opta por mostrar imagens de crianças israelitas a autografarem as bombas que, supostamente, servirão para matar os civis libaneses. Qualquer pessoa poderia mostrar campos de treino de terroristas islâmicos com crianças, para não falar das velhas histórias de rapto de crianças destinadas a sacrificarem-se em nome de Alá. As crianças são sempre uma forma fácil de tornar a miséria mais sensacionalista do que ela já é. Os comunistas também comiam criancinhas ao pequeno-almoço. Todavia, as imagens que José Miguel Silva reproduz não podem deixar ninguém indiferente. Israel, terra santa, educada, baluarte do mundo civilizado no Médio Oriente, a usar métodos de disseminação do ódio em tudo similares aos dos seus inimigos. Serão imagens manipuladas? Mesmo sendo, o que pode pretender alguém de crianças que autografam bombas? Subitamente, lembro-me de um pequeno poema de Cesariny que muito aprecio. Urgente: «As bombas matam porque sofrem duma espécie de doença incurável / que as faz ganhar saúde quando as largam no ar / uma vez expostas à lei da gravidade / e por ela arrastadas para o mundo humano / as bombas precisam de explodir tal como uma criança precisa de urinar / até fazerem um lugar onde fiquem / que se não mova que seja / como um direito a isso / ao pé do deus adulto que lhes deu comida». É por estas e por outras que fico sempre desconfiado quando ouço os comentadores, opinadores, especialistas, decuplicarem o argumento de que «o grande problema é que os moderados no Médio Oriente têm estado sempre à mercê dos radicais». Pergunto-me se, nas altas esferas do poder, ainda existirão moderados no Médio Oriente. Os moderados do Médio Oriente, creio, são cada vez mais as vítimas, os civis, os que estão fartos da guerra, os que (quase) nada decidem. Partindo desse princípio, não consigo entender como é que um país, Israel, com um rendimento per capita de 18 620 dólares, uma mortalidade infantil de 6,9 por mil, pode ser um exemplo de civilidade atacando, a troco de militares, os civis de um país com um rendimento per capita de 6180 dólares e uma mortalidade infantil de 23,7 por mil. A troco de soldados, não se pode justificar a chacina de um país. Daí que a esperança seja já muito ténue. Se a propagação do fundamentalismo nos países islâmicos pode ser explicada, em parte, pela vulnerabilidade dos seus civis («pobres e burros», como ainda ontem ouvi a um português civilizado), já a propagação do fundamentalismo em Israel não é de todo compreensível. Pois aí, quando não eleitos, os civis são ricos e educados. Porém, ao que parece, não menos manipuláveis.

Uma questão de autonomia política

Ao que parece, o presidente do Parlamento Regional da Madeira pretende devolver a essa casa o respeito e a dignidade que merece. Para tal, toca de desenhar «um figurino de “bem-vestir”» especialmente dedicado a jornalistas. Alberto João Jardim apoiou a iniciativa, afirmando que «há quem, por analfabetismo à mistura com exibicionismo, julgue que a 'revolução' não está nas mentalidades, na cultura e nas mudanças correctas, mas sim num desleixo que pretende fingir querer igualizar, porém, erradamente, por baixo, pelo rafeiro». Quando o papa diz sim, ninguém se atreve a dizer não. De hoje em diante, nada de T-shirts, sapatilhas, calças de ganga, sandálias, camisolas (!)… Não sabemos das propostas quanto a mini-saias e decotes avantajados, mas segundo informa do DN «as mulheres beneficiam de uma excepção… no que às camisolas diz respeito». Não sou eu quem vai propor ao presidente do reputado parlamento um figurino de bem pensar, de bem falar e de bem noticiar, mas daqui infiro a prova incontestável de que o Carnaval é mesmo quando um homem quiser.

Da coerção estratégica:


500 mil deslocados


Coerção estratégica
362 mortos civis
Números.

Uma Pedra na Infância

Põe uma pedra
uma pedra sobre a infância

Para que de vez se cale essa respiração
contida suspensa no escuro

Põe, digo-te, uma pedra de silêncio sobre
essa infância essa fala ininterrupta essa

falagem que falha e promete e inventa
os sonhos e as promessas o riso sem porquê

Para que de vez se interrompa a esperança esse
mal que não desiste. Escreve, faz o que o ditado dita:

Enterra no silêncio da pedra essa intolerável coisa
que é a infância, as vozes da noite do poço.

Apaga a infância isso que falta sempre à chamada
e para sempre trocou já os desejos e os medos.

Já não vais a tempo, ela enredou sem remédio
as vidas os nomes a tua condenação. Mas vai.

Para que se cale de vez essa respiração que se ri
na cara da morte, nos olhos do enviado de deus

recita o que o ditado ditou: Põe uma pedra sobre
a infância e ouve a era a folhagem que cobrem

o céu em ruínas.

Também então havia uma pedra no canto do quarto
Alio onde a noite começava, era uma pedra e depois
crescia, petrificava-se no seu coração de pedra
dividia-se e eram várias crescendo; ocupando
todo o espaço do sono, do sonho do mundo.
Pesavam no teu peito procuravam-te os olhos
que de pedra ficavam e o grito era uma pedra
que na garganta subia contra a outra pedra.
O próprio ar golpeado era e dividia a voz
pedra contra pedra, o deserto a perder de vista.

Põe uma pedra sobre outra pedra. Inventa uma
outra infância de que possas recordar-te.
Obedeces ao poema e é sem espanto que vês:
nada acontece. Não há

nenhuma voz na voz dos condenados.

Manuel Gusmão
Manuel Gusmão nasceu em Évora no dia 11 de Dezembro de 1945. Licenciou-se em Filologia Românica (1970), com uma tese sobre o Fausto de Pessoa e doutorou-se em Literatura Francesa, com uma tese sobre a poética de Francis Ponge (1987). Pertenceu às redacções das revistas de literatura e arte O Tempo e o Modo e Letras e Artes, foi colaborador permanente do jornal Crítica, entre 1969 e 1971, e da revista Seara Nova. Fundou as revistas Ariane (revue d’études littéraires françaises) e Dedalus, da Associação Portuguesa de Literatura Comparada (desde 1991). Prefaciou obras de vários autores e traduziu para português poemas de Olivier Cadiot, Christian Prigent e Francis Ponge. A sua poesia, publicada apenas nos anos 90, foi sendo produzida desde os anos 60. Publicou, entre outros, os livros Dois Sóis, A Rosa – a arquitectura do mundo (1990), Mapas o Assombro a Sombra (1996), Teatros do Tempo (2001) e Migrações do Fogo (2004). »

A casa no tempo # 4

Fragmento #7 - Tango
Maria João

Venha o diabo e escolha

A um decréscimo acentuado das visitas tem correspondido um acréscimo acentuado dos comentários. Também nós agradecemos a fidelidade.
Adenda: é curioso como em tempo de férias, quando supostamente haveria mais tempo para brincadeiras, somos muito menos visitados. As pessoas levam os weblogs demasiado a sério.

21.7.06

Dizem que em cavidades de alguns poços,
nas fissuras, por onde cresce o musgo,
faz seu ninho por vezes certo pássaro
e solta desde aí seu canto incerto.

Duvidas e cantas: é o teu credo.
Salvar um pouco desse instante único
que chega a ti como um deslumbramento,
como uma convulsão que desfaz
e dilui fronteiras, coutos, limites.
Porque também o tempo, quando quer
e se detém a meio de dois números,
é um peso que eleva, é como um bálsamo
que alivia a dor de viver sem rumo,
de estar perdido onde nada é nada
e tudo muda de essência e forma.

Vive e alegra-te. E morde a fruta
que é ser e respirar ainda hoje
embora ao comê-la o sabor amargue.
Entra sem medo num lugar mais fundo:
não há sendas que saiam deste bosque.

Voa a teu lado o corvo e sentes frio.
Tuas mãos tocam uma porta, um muro.
Ao longe escuta-se um rumor de água.
Cercam-te vozes, passos de outra vida.
Aqui a tua casa: esta névoa.


Tradução de Joaquim Manuel Magalhães.

José Mateos

José Mateos nasceu em Jerez de la Frontera em 1963. Publicou o primeiro livro, Una extraña ciudad, em 1990. Já este ano reuniu a sua poesia sob o título de Reunión (Poesía 1983-2003). Publicou um livro para crianças e um ensaio intitulado Soliloquios y divinanzas.

20.7.06

O POETA MALDITO

Mata-te a ti
mesmo
depois
enterra o teu remorso
beija a água



Rui Costa

Anónimo said...

Maldito é aquele que é amaldiçoado, contra quem se profere a Maldição. "Maldito" é uma das metamorfoses do "Romântico". Uma viagem "danada" no ego/alter-ego que uma poética adequada manifesta e uma biografia DEVE corroborar. Não há "Maldito" de vida anónima - esse será "apenas" criminoso. "Maldito" é, assim, uma etiqueta póstuma à expressão, dada por um grupo a outro. É um julgamento moral de actores realizado num tempo numa sociedade. Celine é "Maldito"? Quando? Para quem? E Sade? Quem é mais "Maldito"? E Marilyn Manson? Quem é que acha, hoje, que Rimbaud e Verlaine são "Malditos"? Há quem ache que Carl Orff é "Maldito". E se Nietzsche (e já agora Wagner) pode ser "Maldito" não o poderá Heidegger? E Hitler? O cabrão, bebedolas, drogado, machista, misógino, racista, xenófabo, ególatra, nauseabundo, cínico, filho-da-puta, decadente e, alem disso, uxoricida por engano, de alguns juízes leva a pena de morte, de outros a pena de não levarem a vida. Resumindo, "Maldito" é uma marca e um modelo de artista, como de um carro ou de um microondas, que serve para uns consumidores e não serve para outros. É um carimbo necessário para catalogação e replicação de identidades. Alguns diriam que "Maldito" é uma noção burguesa. Maldito é do âmbito do mito e da religião.

O sonhador

Esbatida de todo toda fria
cor, da noite permanece o verde azul.
Vermelhos raios lanças
ameaçam-no, cruzando-se chocam-se
no rude rebrilhar de couraças? Ou será que
exércitos de Satanás desfilam?
Manchas que nadam nas sombras
amarelas, são olhos arrancados às carnes dos cavalos.
Indefeso, despido, o pálido corpo.
Da terra espreme-se, ralada, uma rosa-
pus.

Tradução de Manuel João Gomes.

Jacob van Hoddis

Jakob van Hoddis, anagrama de Hans Davidsohn, nasceu em Berlim no dia 16 de Maio de 1887. Estudou arquitectura, filologia clássica e filosofia. Fundou, na companhia de Kurt Hiller, Georg Heym e Erwin Loewenson, o New Club e o Neopathetic Cabaret, considerados parte do primeiro expressionismo alemão. Em 1911 publicou Weltende, o mais conhecido dos seus poemas. Mais tarde, em 1918, a sua poesia apareceu reunida sob o mesmo título. Recuperando dos primeiros sintomas de esquizofrenia, viajou por Paris em 1912. Morreu em 1942 num asilo de alienados.

A casa no tempo # 3

Fragmento #31 - Babilónia
Maria João

19.7.06

O que entusa e dá asma ou, muito simplesmente, acerca do entusiasmo

Entusiasmo, Dziga Vertov

Abstendo-me de opinar sobre questões que extravasam, pela complexidade, a penúria da minha sapiência, não posso deixar de sugerir a leitura de alguns posts sobre o tema político mais entusiástico do momento. Entusiástico é apenas um modo de dizer, já que a mim nada disto entusiasma por aí além. Sérgio Lavos discorre, com arrevesada ironia, sobre o tratamento que o jornal Público tem vindo a fazer do conflito no Médio Oriente. Diz: «Agora que finalmente já mandámos às malvas toda a decência e qualidades da democracia - que inclui, imagine-se, um jornalismo essencialmente neutro e objectivo, sem tomar partido, na prática um jornalismo que não seja propaganda pura - podemos finalmente dizer que já possuímos as mesmas armas que os fundamentalistas e terroristas há muito manejam (e deixem-me ser catastrófico e exagerado): a manipulação dos factos, a recusa da moderação, um belicismo feroz e agressor contra quem está do outro lado barricada.» A ideia de que o jornalismo pode ser neutro e objectivo sempre me causou alguma impressão, tal como a de que essa suposta neutralidade alicerça a democracia. Há alguma ingenuidade, creio, neste ponto de vista. O jornalismo, feito por jornalistas, é tanto mais democrático quanto mais declaradamente partidário for. A democracia - esse conluio de exíguas maiorias - só será verdadeiramente democrática - deixando assim de ser aquilo que verdadeiramente é, ou seja, o repasto da carneirada - quando a cada um for concedido o direito de ser parcial, de se estar nas tintas para isso a que chamam objectividade. Daí que um Avante seja sempre preferível a um Público, pois relativamente ao Avante o consumidor da notícia saberá sempre com a porcaria que pode contar. Alguém pode acreditar na objectividade do tratamento dado às imagens que os telejornais nos servem à hora da paparoca? Nem os directos já são objectivos, na medida em que encenam a realidade (manipulação dos factos) a partir das perspectivas disponibilizadas no arbítrio de uma cabine de realização. Outro texto muito interessante, sobre o mesmo assunto, é o de Bruno Santos no weblog Baixa Autoridade. Neste caso o alvo de crítica é uma notícia da Lusa. Fala de «uma sofisticada tecnologia de contaminação da chamada “opinião pública”». A opinião pública é, por definição, um artefacto infectado pela informação de massa. Daí que seja contraproducente - até elogioso - acusar numa notícia da Lusa o sinal de uma «sofisticada tecnologia de contaminação», pois essa notícia não é senão efeito das máquinas produtoras de virtualidade que dão forma ao mundo da informação comunicável (outra há, fechada a sete chaves, que será sempre top secret). Recordo Karl Jaspers: «Público são todos os anónimos outros, a multidão sem inter-relação orgânica, cuja opinião assume força decisiva. A isto se chamou opinião pública. Ela tornou-se, num plano ficcionista, a opinião tida como a de todos, evocada e formulada como sendo a de indivíduos e grupos. No fundo, porém, constitui uma realidade imponderável e, por esse motivo, sempre ilusória, momentânea e evanescente, um nada que, sendo o de um grande número de indivíduos, vem a tornar-se um poder do instante que passa, destrutivo e fanatizante.» O Bruno diz-se repugnado até à náusea. Como eu o compreendo! E admiro até a boa vontade na denúncia destes casos. No entanto, mais que denunciar estes casos eu prefiro sempre lembrar-me de quão fantasmagórica é «a realidade» que nos chega através dos meios de comunicação de massa. Na base deste princípio, o que me custa realmente aceitar é a facilidade com que no conforto das salas de estar qualquer um de nós ousa dizer-se deste ou daquele lado da barricada. É que, no fundo, "nós" não sabemos de que estamos a falar. Ou melhor: sejamos “amigos de Israel” ou “amigos da Palestina” - estas especificações valem sempre mais pelo que excluem do que pelo que incluem - sabemos apenas que estamos a falar daquilo que é suposto a massa falar.

Malditos, heterodoxos y alucinados

Uma lista no elmundolibro.com. Nem um português. A morte saiu barata aos malditos cá do burgo. Se não me esquecer, hei-de fazer qualquer coisa do género aqui no Insónia. Mas só com portugueses.

Uma conversa

Num campo de trigo,
O homem está vestido com uma túnica de renda ocre manchada de vermelho.
O cavalo está nu. Pende-lhe da cauda uma caixa de fósforos donde saem as antenas de uma rã.
O homem está sentado numa almofada com desenhos verdes.
O cavalo montado no homem.
O homem: - Desprezámos o diamante verde?
O cavalo: - Creio que pela lei devíamos fazê-lo. Estando a lei diminuída, o meu espírito pede a redução das velas.
O homem: - Lembra-te, esperto, que o homem não tem o direito de satisfazer os empregados e que mesmo o telefone se recusa a pagar os impostos.
O cavalo: - Compreender é diminuir.
O homem: - Não, visto que ainda não tentámos a nossa sorte. Poderíamos fazê-lo, dado que é mais fácil.
O cavalo: - Não, não, não acredito nessas coisas concretas que devem, apesar da dignidade que possuem, esgotar a lenga-lenga. Canse-os, diga-lhes parvoíces que tirem a coragem, verá como eles nos seguem.
O homem – Para quê? Já não tenho bastantes chatices com que me ocupar, quanto mais o rabo de um milionário.
O cavalo: - o amor que amei sempre me apreciou!
O homem: - Sim, eu também.
O cavalo: - Somos os dois do mesmo naipe.

Tradução de Isabel Hub Faria.

Gisèle Prassinos n. em 1920
Gisèle Prassinos nasceu em Istambul em 1920. De origem grega, a sua família emigrou para França tinha Gisèle apenas dois anos de idade. Os seus primeiros textos surgiram em 1934, na revista francesa, de orientação surrealista, Minotaure. O seu primeiro livro, La Sauterelle arthritique, foi publicado em 1935 com prefácio de Paul Eluard. Seguiram-se muitos outros, dos quais se destacam: La Vie la voix : poésie (1971) e Poésie partagée, été 1987 (1987).

18.7.06

Os canibais


O Abrupto queixa-se de pirataria: «Hoje durante algum tempo um outro Abrupto aparecia no mesmo endereço.» Nunca tal me aconteceu, nem há razões para que tal me aconteça. Mas pelo cagaço que apanhei ontem, faço ideia o que isso seja. Bem, o que quero dizer é que me repugna a ideia de que alguém possa piratear um weblog. Julgo mesmo canibalesca (quando tiver paciência, explicarei porquê) essa possibilidade. Não apreciando especialmente o Abrupto (o weblog, não o autor / o autor, não o weblog), sou dos que consideram esse weblog uma fortuna sem a qual a blogolândia portuguesa não seria a mesma (para o bem e para o mal, se é que me faço entender). Assim sendo, desde já manifesto a minha repugnância por todo e qualquer inútil que se dê ao trabalho de piratear os espaços de opinião (de seja quem for) numa sociedade democrática. Será a sociedade portuguesa suficientemente democrática para se aguentar à bronca de um José Pacheco Pereira com weblog?
Adenda: Afinal, JPP foi apenas vítima do capitalismo selvagem.

Dúvidas que me assolam

Tomamos consciência da real dimensão da nossa literatura quando pensamos nos “malditos”. Penso em Alfred Jarry, Antonin Artaud, Allen Ginsberg, Francis Picabia, Pierre-François Lacenaire, Charles Bukowski, tantos outros. Só na literatura francesa encontramos duas mãos repletas deles. Tantos que fazem estilo. Quem são os nossos conterrâneos equivalentes?

TAV 69 remisturado por Abstraxixe

12
ò pá
não é a puta da vida
nem a puta do dinheiro
nem a puta do sucesso
nem a puta do eu
é a ponta da puta ò pá
ó pá
porque é que o poema não está
em exposição?
ò pá
à rapariga dos caracóis
ofereci a mais bela capa
de morcego
em troca dei ao morcego
uma cabeleira de caracóis
foi ele que escolheu
ò pá
como é que eu posso
escrever na net
que na dobra da página anterior
está um charro inteiro?
ò pá
eu quero uma mulher
que me acompanhe
até às cinco da manhã
tirana.

13
A sociedade de consumo
bem
que digo eu
um jogador de pólo aquático.

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Nuno Moura

A casa no tempo # 2

Fragmento #24 - Ruas estreitas
Maria João

17.7.06

VERNIZ

Não gosto de unhas envernizadas,
sobretudo com aquele tipo de verniz
esbranquiçado que agora se vê bastante.
Há mulheres que ficam bem com unhas ver-
melhas (ou de outra cor).
Mas o verniz esbranquiçado é feio porque é
um estar entre [é um nem pintar nem
deixar de pintar] ___________

É como dar um beijo sem meter a língua.
Como ir ao cu com jeitinho, tal brisa que se
escapa do jardim por entre milenares cortinas.
É querer e é não querer. Viver num halo, dizer
muitas vezes a palavra tule.
É recuperar, toda a vida, daquilo que nunca
se fez.

É ter orelhas e elas serem feias e apesar disso
tê-las e apesar disso tratá-las de modos e
respeitosamente.
É chamar Syd Barret ao cão e
do homem reciclar: “foi pena”.

A vida é um purgatório e eu não sou exemplo.
Mas há coisas que não me fazem sonhar e então
eu digo.




Rui Costa

A casa no tempo # 1


Fragmento # 25 - Da cidade
Maria João

16.7.06

TAV 69 remisturado por Abstraxixe

10
Perguntei à lua feminina
virou-me a cara
nenhum grego é o mesmo
para sempre
corno.

11
Literatura russa
és meu amigo
entro com a banda
na tua casa
às 5 da manhã
acorda amigo
lisboa é pitersburgo
Pittâ
Filarmonia
Artistas e Securitas
As mães dos nossos
Tristes resultados
David, Daniel, Duarte
Ficção científica! assassinos!
sucessores
chefes da sindical
Olegários, Mários, Palmera
charuto solador
novas moscas
então e novas obras Palmera? (risos)
até agora nada de novo. (risos)

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Nuno Moura

A opinião

Ontem, ao chegar a casa, ainda vi os últimos 15 minutos de O Eixo do Mal. Quando comecei a ver, Clara Ferreira Alves dizia, com desdenho, que os weblogs são um mundo sem regras onde tudo é possível. Ainda ouvi uma voz que me pareceu ser a de Daniel Oliveira afirmar que há weblogs sérios, fazendo assim uma distinção que não valendo nada vale sempre para tudo. Enfim… Weblogs sérios, weblogs tablóides, weblogs cor-de-rosa, weblogs azuis, weblogs científicos, weblogs artísticos, weblogs literários, weblogs políticos, weblogs antropológicos, weblogs românticos, weblogs insultuosos, weblogs epigramáticos, weblogs polémicos, weblogs, weblogs, weblogs, tantos quantas as cabeças. Podem não dar saúde nem fazer crescer, mas também não matam. Só não são inofensivos porque há quem se ofenda com o direito à opinião, com o exercício livre da opinião. Nenhum weblog, por mais escabroso que seja, me ofende. O problema aqui é outro. Os weblogs vieram pôr em causa “A Opinião”. Aqueles que pretendiam ser “A Opinião”, sentem-se agora mera opinião. É preciso dar voz às pessoas, dizia-se. Mas isso foi antes das pessoas terem voz.

15.7.06

Nos 110 anos do nascimento de Durruti

in AD LOCA INFECTA.

Deixo quatro das dez razões apresentadas para se dizer – preferia ser – anarquista: «1. O anarquismo é a única ideologia genuinamente libertária. Quem quer que considere que a liberdade é o mais alto valor político, não pode senão escolher o anarquismo. Só o anarquismo garante 100% de eficácia em termos de liberdade, tudo o resto são engodos e paliativos.2. É muito mais poético e gratificante estar do lado dos vencidos da História do que pertencer à horda dos vencedores. Os vencedores cheiram a sangue e a intriga, já que se alimentam sobretudo de carne, mesmo quando se querem macrobióticos.3. Dizendo-se anarquista, uma pessoa tem uma óptima desculpa para não perder tempo com actos eleitorais,4. e uma excelente justificação para ser pobre.»

Caramelos para o Miniscente

Parabéns ao Miniscente pelos três anos. Aproveito para dizer que achei a série sobre o tom dos weblogs uma grande seca. Não consegui ler um único post até ao fim. Gosto muito mais do Miniscente quando não se põe a reflectir o tom dos weblogs, que para mim é projecto tão avaro quanto uma ontologia da obliquidade comunicacional. Não sabendo ao certo a abrangência da análise levada a cabo por Luís Carmelo, arriscaria sugerir uma nova série sobre o tom da reflexão acerca do tom dos weblogs. Qual o tom de um weblog quando se lança numa inquirição sobre os weblogs? Será possível reflectir fenómeno tão esquivo dentro do próprio fenómeno? A linguagem reflecte-se dentro da linguagem? Se Julia Kristeva não tivesse escrito a sua História da Linguagem a Grécia seria mais pobre? Enfim, toda uma série de questões que julgo da mais elementar pertinência num tempo em que os projectos não podem, não devem, passar de projectos.

TAV 69 remisturado por Abstraxixe

7
Se abanas a cabeça
quando alguém fala contigo
é porque estás com pressa
e como abanas constantemente
a cabeça
hás-de conseguir abanar o outro
chegarão ambos atrasados.

8
Torturei-me de antecedentes
para chegar ao poema sujo
de tinta e de pregadores
de poesia boa
vão-se foder
à poesia vou-lhe ao agapito
wake up child.

9
Joni mitchell a cantar o pop pop pop
esse dedo no meu cu é um cardume
rapariga simpática
chupa e deixa que eu fume.

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Nuno Moura

14.7.06

os amantes de novembro são fugazes como adolescentes;
invadem as pensões viradas para o tejo da mesma forma
que os putos faltam a química e investem nos apartamentos
vazios a meio da tarde. uma queca rápida e sonora
para depois regressarem como se o mundo inteiro lhes coubesse
num sorriso. os amantes de novembro não entendem a calma
nem a preciosidade da sedução; são famintos e cegos e
brutos, e prestam pouca atenção aos orgasmos que não chegam.
ficam o vinho e o limbo e uma pesada herança
para o futuro. fica o apartamento vazio a meio da tarde,
uma janela debruçada ao rio, as paredes infectas de cheiros.
depois regressam, com todo o mundo a encher-lhes o sorrir.

Fernando Dinis

13.7.06

TAV 69 remisturado por Abstraxixe

4
O armário
peida-se menos
do que o meu pai
a porta do armário
cede.

5
Noventa volts na língua
a doença de Mariano
está sempre em toda a gente
deixar cair folhas na rua
tentar agarrar alguém e perceber
que deixar as folhas na rua
nos irá custar 5000 euros
mais uma mudança
de Mariano
para Adriano
o pico-forte de Afrodite.

6
Olha desculpa lá
eu não estou preparado
para estas coisas
parece um teste
tipo os amantes
um prepara a festa
e outro o fim de semana
tipo revisor de caracteres
diga lá com que ferro
marca hoje os poemas
não penses em mim.

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Nuno Moura

[NEGRUME]


6.
estou a dizer caralho repetidamente.
atrás de mim vejo uma embarcação em ruínas,
o sonho assume uma amplidão soturna, as bocas cospem fogo.
depois a cidade cai, com estrondo.

vem uma mancha negra ou azul, como petróleo,
e contamina as minhas mãos. principio
a perscrutar-te os olhos sem te reconhecer.
continuo a dizer caralho, repetidamente.

depois o sonho alonga-se numa queda sem fim.
vai a cabeça à frente do corpo, coberto
por uma toalha vermelha. da boca voam
insectos gigantescos, maiores que a sua sombra.

a treva cobre tudo. chega um vulto e diz que não se pode
regressar por esse caminho, há que seguir em frente.
um caminho de longos silêncios e longas lâminas
intimida os que querem passar.

a mão intratável sobrevoa-me os ombros.
tenho as omoplatas pontuadas por uma claridade verde
[esmeralda.
estou a chorar, na antiga casa, o velho alpendre.
volto a cabeça e vejo o teu sexo, a gruta escarlate e quente.

a gruta tem um enorme poder de sedução,
sou ainda uma criança e fico em silêncio a observar.
o meu silêncio pesa mais do que o peso da minha alma.
passam gansos, peixes brancos. digo repetidamente caralho e
[não me calo.

vem alguém e entorna leite no chão da cozinha,
um homem vocifera e ergue-se com uma corda ao pescoço
e uma faca na mão. volto a repetir: caralho, caralho, caralho.
passa um carro na rua a buzinar estridentemente e acordo, num
[sobressalto terrível.

depois, tudo é silêncio avassalador. há passos surdos no corredor
contíguo ao meu quarto. oiço um alfinete cair, a mãe a gemer.
a cama range, o pai volta-se nos lençóis, para outro lado,
outra direcção atroz.

a casa está submersa num silêncio sólido, irreparável.
estou muito só e tenho frio, embora esteja um calor abrasador.
ouve-se um cântico ao longe. o som de asas a roçar nas paredes.
digo: caralho, caralho, caralho, num sussurro infinito, até perder
[o fôlego.


Amadeu Baptista: fotografia de Ana Baião, publicada no Expresso a 10 de Janeiro de 2004


Amadeu Baptista nasceu no Porto a 6 de Maio de 1953. Frequentou a Faculdade de Letras da Universidade do Porto, tendo colaboração dispersa em vários jornais e revistas nacionais e estrangeiros. Poemas seus foram traduzidos para Castelhano, Italiano, Inglês, Francês e Romeno. É divulgador em Portugal de poetas espanhóis e hispano-americanos. Está representado em diversas antologias e livros colectivos. Da sua vasta obra, destacam-se As Passagens Secretas (Fenda, 1982), Maçã (Limiar, 1986), ao qual foi atribuído o prémio José Silvério de Andrade, e, mais recentemente, Paixão (Afrontamento, 2003) e Negrume (& etc, 2006).

Apelo ao boicote aos produtos da GM

General Motors
Cada um, no momento de comprar um Opel, um Saab, um Chevrolet, [um Buick, Pontiac, GMC, Saturn, Hummer, Cadillac, Holden, Vauxhall], um Isuzu ou um Suzuki deveria pensar duas vezes. Ou melhor, não comprar.

Elogio da confissão

Pedro Mexia
Invejo Pedro Mexia. Temos quase a mesma idade, mas ele é muito mais culto do que eu. É provável que também seja mais inteligente, embora esse seja sempre um item difícil de determinar. Escreve, obviamente, muito melhor do que algum dia eu conseguirei escrever. Mesmo não ambicionando escrever "no registo do costume" de Pedro Mexia, inegável se me torna, a cada momento, que eu nunca hei-de escrever assim tão bem. Só não lhe invejo a barriga e o cabelo loiro, ainda que me seja cada vez mais penoso pronunciar-me sobre barrigas. Quanto à filiação capilar, prefiro claramente a minha. Acresce que invejo Pedro Mexia por outra razão. Ele, que se diz de direita, ousa escrever coisas que eu preferia ler a alguém que se dissesse de esquerda. Leia-se, a título de exemplo, a crónica de hoje no Diário de Notícias. Não dispensando leitura integral, arrisco numa síntese: «Digamos que tenho pelo Parlamento o mesmo sentimento que tenho pela minha vesícula: agradeço em abstracto a sua diligente actividade, mas dispenso detalhes. (…) O hemiciclo, em termos arquitectónicos, tem estilo. Infelizmente, em tarde de ananases, a casa da democracia estava transformada em sauna da democracia. (…) Nunca tinha visto ao vivo dois terços dos nossos eminentes deputados. Tomei algumas notas. (…) Nuno Melo lembra um entusiasmo de magala que vai às meninas. Miguel Frasquilho cultiva uma pilosidade digna dos Habsburgos. (…) Há uma socialista que parece uma lojista de Carnide. Há um deputado ecologista com rabo-de-cavalo. Bernardino Soares nunca foi novo. Fernando Rosas é mais credível de suspensórios. (…) O debate é cansativamente previsível. (…) Cada bancada aplaude e apupa estritamente o que lhe compete e apenas isso, lança dichotes e risadas, os clichés são em grande estilo Gato Fedorento (com metáforas futebolísticas e tudo). O nível geral é fraquinho. (…) Ideologicamente, a situação é ainda mais complicada. Eu sou um homem da direita moderada (aquilo que a direita musculada chama "um homem de esquerda"). O Governo é um Governo de centro-esquerda (aquilo a que esquerda ideológica chama "um Governo de direita"). Assim, tenho dificuldade em embirrar com este executivo dito socialista. (…) Não sei exactamente qual é o estado da Nação. Mas creio que não se recomenda.» Foda-se, como eu gostava de ter escrito isto.

12.7.06

DOIS


1.POESIA PORTUGUESAEM REVISTAS ESTRANGEIRAS (blog de Ruy Ventura): http://alicerces1.blogspot.com/2006/07/poesia-portuguesa-em-revistas.html


2. MANA CALÓRICA + LAS TEQUILLAS NO LANÇAMENTO DA REVISTA “aguasfurtadas” 9 (VIDEOS):
http://revista-aguasfurtadas.blogspot.com/


Rui Costa

11.7.06

TAV 69 remisturado por Abstraxixe

1
Devia dar-te 200 euros
só te dei cem
caramba ei-los
100 menos tens.

2
A actriz estende a mão e diz
“eu nem consigo que tu te sentes
dois segundos para falares comigo”
two seconds
o tradutor
que olhava para a imagem
escreveu 5 segundos
foi o meu primeiro pensamento
ela estendeu a mão aberta.

3
Bules
substituis as omeletas
que caem do prato suspenso
na cabeça do xerife
e à noite estendes
todo estourado
ou arregaças as calças
para substituir as omeletas
que caem da cabeça da mulher
que atravessa o rio
com água pelos joelhos?
bules
fazes o que outros povos fazem
é mais comum substituir omeletas
quando te mandam.

Nuno Moura

podia viver como os animais na dúvida permanente
de alimento
e em anéis de luz conseguir trocar de pele.
regressando do pó
seria fácil acreditar num deus qualquer,
um deus afecto a erros e a ausências, coleccionando a fé,
como um acto sórdido de conhecimento.
anseio por esse animal que haveria em mim
e em mim pressentir
o estremecer e o encanto e o esgar de assombro
no batimento da terra, no rufar de tempestade.

Fernando Dinis

O PROJECTO

Projecto

- Então.
- Ando a trabalhar num projecto.
- Ai sim, de quê?
- Ora (abrir os olhos), num projecto.
Insisti:
- Pois. Entendo. É sobre quê o projecto?
Não cai bem (Como Um Som Ao Fundo):
- Pá, é um projecto. Estou a trabalhar num projecto que ainda não está acabado.
Com tamanha dedicação explanatória tive que perceber. Reagi:
- Ahhhhhhhhhhhhhh!
Agora ele insiste:
- É isso, ainda não o acabei. É mais uns tempos. Ainda é projecto, estás a perceber?
Eu não percebia. Nadíssima. Nada de nada. Zero. Mas começava a desconfiar.
Voltei:
- Um projecto de um projecto, portanto?
- Não (olha o infinito__ paragem de autocarro)...agora já é mesmo o projecto.
A luz abrilhantou-lhe os olhos (;noite). O receio inicial cedeu à proclamação optimista:
- É um projecto original! Uma coisa diferente, que ainda não foi explorada, percebes?

Pensei, pensei, pensei em desistir de continuar a pensar. Disse-lhe:
- É assim mesmo. O que é preciso são projectos originais, que não estejam explorados. Olha, como o teu...
- Ah, obrigado...obrigado.
- Eu também ando a trabalhar num projecto - expliquei-lhe.
- Ai sim, e que tal é que vai o teu projecto?
- Vai bem, obrigado. É um projecto secreto.
- Não podes dizer sobre o que é que é, então ?
- Poder podia. Mas deixava de ser secreto. Além disso, ainda não acabei de decidir por que é que ele é secreto. É que é ainda um projecto, e sabes como é.

Ele sabia, eu também fiquei a saber. Um projecto é algo que não se explica. É isto.

Rui Costa

10.7.06

Nunca a palavra pássaro voou
nem sorrisos matinais alimentaram sons
de alento a corações desvalidos
a dor, estrangulou os afectos
e o sangue que circula
é pura teimosia

Aurora Silva

Suma da perfeição

Esquecer o que é criado,
Memória do Criador,
Atenção ao interior
E sempre amar o Amado.

Versão de Victor Oliveira Mateus.

São João da Cruz

São João da Cruz nasceu em 1542 em Fontiveros, em Espanha. Em 1548, a família mudou-se para Arévalo, transferindo-se, em 1551, para Medina del Campo. Entre 1559 a 1563, São João da Cruz estudou Humanidades com os Jesuítas. Ingressou na Ordem dos Carmelitas aos vinte e um anos de idade. Pensa em tornar-se irmão leigo, mas os seus superiores não o permitiram. Tendo concluído com êxito os estudos teológicos, em 1567 ordenou-se sacerdote e celebrou a sua Primeira Missa. No entanto, ficou muito desiludido pelo relaxamento da vida monástica em que viviam os Conventos Carmelitas. Decepcionado, tentou passar para a Ordem dos Cartuxos, ordem muito austera. Em Setembro de 1567 encontrou-se com Santa Teresa de Ávila, que lhe falou sobre o projecto de estender a Reforma da Ordem Carmelita também aos padres. O jovem de apenas vinte e cinco anos de idade aceitou o desafio. O desejo de voltar à mística religiosidade do deserto custou ao santo fundador maus-tratos físicos e difamações. Em 1577 foi preso por oito meses no cárcere de Toledo. Nessas trevas exteriores acendeu-se-lhe a chama da sua poesia espiritual. »

Dotores e ingenheiros

Deixando de parte os erros ortográficos e as sintaxes impenetráveis, eis algumas pérolas dos exames de Psicologia de 12.º ano por mim acabados de devolver há coisa de horas: 1. «O actual objecto da Psicologia é a alma e não simplesmente os problemas dos anormais.»; 2. «Um acto reflexo é quando nos picamos numa agulha e dizemos “ai”.»; 3. «A frustração é uma coisa que sentimos quando estamos frustrados.»; 4. «A relação do bebé com a mãe é muito importante porque é a mãe que vai dar carinho ao bebé, fazendo assim com que ele aprenda mais tarde a andar e depois a gatinhar.»; 5. «A punição é um castigo dado pelo pai, enquanto que o reforço negativo é uma retirada da auto-estima.»; 6. «O meio é muito importante para a inteligência porque, por exemplo, se uma pessoa nascer com uma inteligência média numa sociedade pobre de cultura, como África, fica estúpida e se nascer com essa mesma inteligência média numa sociedade rica de cultura, como E.U.A., fica mais inteligente.»; 7. «A personalidade é uma característica própria da espécie.» E por aqui me fico, certo de que estes são alunos perfeitamente recuperáveis em algumas das melhores universidades do país.

7.7.06

etanol said...

Henrique:
Entendi perfeitamente a tua opinião sobre o último livro do Pedro Sena-Lino. Quando afirmo que gostei, mas sou suspeita, é porque o Pedro, como tu sabes, é para mim um amigo muito querido. Os últimos dois livros do Pedro surpreenderam-me bastante: porque neles ele revelou uma faceta de ancião que eu desconhecia, ele fez uma abordagem de temas como a morte, a separação, a ausência com uma maturidade rara para alguém que ainda é tão novo, ainda não completou 30 anos. Ambos os livros têm uma escrita sofrida e muito honesta, a meu ver, mas eu não tenho a tua formação, nem a mesma distância na leitura. Admiro muito o trabalho do Pedro e sobretudo, admiro-o muito como ser humano porque é um dos homens mais bem-educados e bem formados que conheço. É claro que a minha opinião é suspeita, porque os afectos falam mais alto, mas a empatia é um fenómeno que por mais que se tente explicar, nunca tem explicação. É claro que eu e o Pedro, apesar de amigos, também temos divergências estéticas, mas respeitamo-nos mutuamente. O mesmo se passa contigo, por exemplo, tu gosta de Rock e eu de música clássica, no entanto entendemo-nos e respeitamo-nos. Não achas isso fantástico?Uma abraço amigo
Maria João

silly season

equaciono a geometria das marés e ofereço-lhes forma
e deambulo como um cão vadio nos lábios sanguíneos
e rubros das contas feitas.
na proa do pensamento existe um promontório privado
ladeado de acordes maiores,
nele adormeço enroscado e o meu corpo é um universo
sonoro, sopro vago na imagem tremeluzente dos desertos.
se estremeço e protesto
logo apetece descer em voo picado ao areal
inundar debutante os passos em volta.
depois sereno
rego a gasolina a membrana acústica do sonho
e desfecho archote num rodopio estival.

Fernando Dinis

Mais parabéns

Pelo primeiro aniversário do Estrada de Santiago. Excelente weblog, escrito de Caldas da Rainha, cujo autor não conheço pessoalmente. Só para que conste.

Fragmento #35 – Pátio

ao José de Carvalho Guinapo
Era Setembro da terra molhada ao sul. O pintor habitava o bairro árabe fora de portas, onde as casa eram brancas e secretas, fechadas para as ruas e os portões de metal abriam para pátios interiores, com muros altos e caiados. A cidade das muralhas assombrava os sonhos do pintor, uma cidade em sangue aparecia-lhe num corpo de mulher, vestida de negro e seguia-o no silêncio da noite, ele nunca conseguia ver-lhe o rosto. O pintor estava a construir uma torre em madeira no seu pátio, para poder entrar em diálogo com o seu grande mestre.
Era Setembro ao sul na terra ardente com o céu denso e pesado; um cinzento quase chumbo invadiu a planície amarela e o pintor subiu à frágil e alta construção de madeira no seu pátio; numa das mãos trazia um livro com pinturas do seu mestre El Greco, na outra uma cadeira de lona, fechada; ele tentou equilibrar a cadeira no topo da torre, mas o livro escorregou-lhe das mãos; ele aventurou-se a apanhá-lo e também caiu, seguindo-se uma derrocada da cadeira e de toda a construção; as tábuas caíram sobre o seu corpo, provocando-lhe dor e ferimentos, mas o pintor levantou-se das pedras do chão, desviando as tábuas em revolta, apanhou o livro, guardou-o furioso e retomou a construção, energicamente. Desta vez construiu, sem folgo, cinco paletas com as tábuas de madeira, quatro colocou-as na vertical, em equilíbrio com a quinta no topo. A torre ganhou forma ao entardecer, ocupando o espaço do pátio, quase não era possível circular em torno dela, a sua altura correspondia aos muros que a rodeavam; a atmosfera era pesada, os céus anunciavam uma tormenta, o pintor conseguiu equilibrar a cadeira de lona no topo da torre, mas a cadeira já não tinha assento; as mãos do pintor eram brutais, cheias de golpes e mazelas da sua labuta, tinham o poder de construir e destruir.
Era Setembro da terra molhada ao sul, a noite escura acordou em raios e trovões na planície, a terra ardente desejava as primeiras chuvas do verão. O pintor gritou e rasgou as suas roupas, subiu e conseguiu alcançar o topo da torre, desta vez não carregava nenhum livro, apenas o seu corpo ferido pelo trabalho, apenas a dor da sua luta; sentou-se na cadeira que já não era cadeira, era a terra ardente da planície que se fundira com o seu próprio corpo e ambos receberam as primeiras águas do Verão em clarões no céu, ouvindo as vozes da tempestade. O pintor finalmente entrou em diálogo com o seu grande mestre El Greco.

Maria João

Olha que porra

Um dos meus weblogs de sempre fez anos e eu não dei por isso. Não levem a mal. Também me esqueci dos anos da minha mulher. Para mim será sempre o blog do Luís e da Sofia. Parabéns.

6.7.06

[Animais domésticos]

No final de cada período escolar era frequente organizar-se uma festa no pavilhão municipal. Havia um DJ a abrilhantar o forrobodó, com ameaçadoras sequências de canções. Dividíamo-nos em dois grupos: os que tinham namorada e os que, negligenciados pela graça do amor, ambicionavam ter. Havia ainda um terceiro grupo, do qual eu fazia parte. Era o grupo dos que preferiam “os paraísos artificiais” aos prazeres da paixão. Tristes opções. Normalmente ficávamos a um canto, observando as miúdas dos outros e trabalhando a inveja como quem afia lapiseiras. Quando os slows eram abruptamente interrompidos pelas guitarras dos Sex Pistols, as miúdas encostavam à box e os rapazes misturavam-se no centro da pista. Reuníamo-nos em círculo, numa espécie de manifestação de virilidade, tipo BBC vida selvagem, que punha à mistura nódoas negras nas canelas e alguns narizes a sangrar. Às vezes sinto saudade desse tempo. Era tudo mais simples, mais autêntico. Menos doméstico.
do baú das velharias

as mãos ardendo de sol
em gestos coados de luz
toda uma tarde sonora dentro
de nós – por inventar –
e o mundo inteiro parava num fino
e saliente socalco de tempo
dizias: silêncio
e a tua boca não se mexia
não se abriam os lábios
dizias: entra em mim
e por momentos
foi fogo a luz quieta dos dedos
escutando o que não acreditavas
desse mundo

Fernando Dinis

o corpo cai em desmaio na areia da noite
há um frio liquido na linha da quietude
e este tropeçar em queda
mesmo que as horas nos chamem o sono
é violento para o que esperávamos do destino

a madrugada é prenhe de ti nesta ausência
revolvo o corpo nesta praia de jejum
há guerras e incêndios nos olhares em redor
quando convulso a respiração em teu choro
e mordo as últimas letras do teu nome

Fernando Dinis

Fernando Dinis nasceu em Lisboa a Novembro de 1976. Estudou piano na Academia de Amadores de Música em Lisboa. Compôs bandas sonoras para teatro e foi actor. Editou em 2003 Dá-me-te, pela Hugin Editores, e em 2006 foi integrado na antologia bilingue de poesia actual portuguesa Poema Poema, editada por Uberto Stabile. Será, de hoje em diante, colaborador do Insónia.

A vaca dos outros

As Forças Armadas têm mais 460 oficiais do que o previsto na lei, o que implica um custo financeiro de cerca de 250 milhões de euros, cerca de 15% do orçamento total do Ministério da Defesa para 2006, informa hoje o Correio da Manhã. Ao que o CM apurou, pelo menos seis postos têm em excesso 460 oficiais no conjunto da Marinha. O decreto-lei 202, aprovado pelo segundo Governo de Cavaco Silva na sequência da «Lei dos Coronéis», fixa os quantitativos dos quadros de pessoal da cada um dos ramos das Forças Armadas, mas esses limites não estão a ser cumpridos. O jornal revela que existirão em excesso 236 oficiais no Exército, 145 na Força Aérea e 79 na Marinha. »
Eu já poupei para as férias. E tu?

5.7.06

Anima-te.

O Mestre disse: «Tenho ainda de encontrar o homem que aprecie tanto a virtude como a beleza das mulheres.»
Confúcio

Por que será que não descobrem os génios que todas as semanas brotam como cogumelos?

Percebo a questão, embora a considere meramente retórica. Não descobrem os génios que todas as semanas brotam como cogumelos, mas são muito ágeis a descobrirem-se a si próprios e a descobrirem outros génios que, enfim, vêm todos na corrente da genialidade que entre nós vai brotando. Isto na exacta proporção do esforço que fazem para não descobrirem génios, digamos assim, menos à mão. A questão deveria ser, pois, outra: por que redescobrem assiduamente sempre os mesmos génios, não fazendo mínimo esforço para descobrirem génios novos?»

GAVETA

Na gaveta um furador, um canivete,
um agrafador,
objectos confortavelmente cortantes.

O furador com seus caninos
síncronos,
se lhe prensares a mandíbula,

o canivete da finíssima língua,
corta o olhar
quando o sáurio a cospe,

o agrafador, brusco, homeopata,
o corte sara o corte,
que admirável precisão!

Só este meu cérebro obtuso
(que lâmina!) não compreende
o que raio estarão ali a fazer.

Daniel Jonas, fotografia de Pedro Saraiva publicada no suplemento 6.ª
Daniel Jonas nasceu no Porto em 1973. Publicou O Corpo Está Com o Rei (AEFLUP, 1997), Moça Formosa, Lençóis de Veludo (Cadernos do Campo Alegre, 2002) e Os Fantasmas Inquilinos (Cotovia, 2005). Traduziu, para as Edições Cotovia, Paraíso Perdido, de John Milton.

GISELA

Gisela

Era uma vez uma mulher que tinha um sonho: ser acrobata vaginal. Os seus pai e mãe eram respectivamente cuspidor de fogo e atiradora de facas. Ou seja, empregado de escritório e doméstica. Desde cedo se habituara ao universo dos prodígios, daqueles que diariamente e em surdina se manobram para que um dia surjam no esplendor da sua força ante a surpresa dos outros. Os outros são eu e tu e aqueles que são mais espectadores do que actores mas ela não: queria ser vista, em vez de ver.

Cresceu assim, sem dar conta de que num intervalo do mundo se fizera mulher. Vinha gente de muito longe para a ver lançar bolas de ping-pong e retirar correntes de ferro com 18 metros de comprimento. Apertava o meio dos homens com o poder do seu centro quando se enamorava deles ou lhes queria ralhar. Os homens congratulavam-se e forneciam-lhe muito dinheiro, que ela arquivava com gratidão de vantagem numa caixinha azul onde a imagem breve de santa teresinha lhe acompanhava as horas. A santinha invejou-a tanto que o céu estremeceu e uma chuva negra caiu a desarrumar-lhe os dias. Ficou velha de repente e os amigos deixaram de a requerer. Há coisas que Freud não consegue explicar, pensou, e a sua pele engelhada alisou-se como a sorrir novo sonho.


Rui Costa

Senhor Tavares

O Senhor Gonçalo era escritor e gostava muito de andar a pé pela rua a observar pessoas. O Senhor Tavares também. Como passeavam ambos na mesma rua, era costume observarem-se um ao outro. Certo dia, o Senhor M. atravessou-se-lhes no caminho. Ficaram os dois muito espantados, pois nunca antes tinham visto o senhor M. Metendo conversa com o Senhor Tavares, o Senhor Gonçalo perguntou: quem é o Senhor M.? O Senhor Tavares não sabia. Mas estava claro que o Senhor M. só podia ser o senhor do meio.

Após mais uma excelente entrevista de Ana Sousa Dias, desta feita ao Senhor Gonçalo M. Tavares.

4.7.06

TONHÃO, CORAÇÃO-DE-BALIZA

Sapato Tonhão
Amador da oratória aprendida nos jornais da bola, o jogador de futebol desenvolveu um discurso hermético sobre cuja compreensão hoje me proponho arriscar alguns contributos.
Perguntam ao Tonhão:
- Tonhão, um adversário difícil, este Rio Ave?
E o Tonhão responde:
- Bem, o Tonhão tem consciência da dificuldade mas o jogo tem 90 minutos e a bola é redonda.

Um espanto de análise e profundidade visionária. Senão vejamos: "o Tonhão tem consciência". Admirável. Ninguém se lembraria de dizer tal coisa. Muito menos alguém que se trata na terceira pessoa, certamente porque um dia lhe apontaram para o espelho defronte dizendo: "Vê, Tonhão: aquele és tu".

E o Tonhão viu. E não gostou. E partiu o senhor do espelho espetando quatrocentos pedaços de vidro aleatórios na cara do ainda e sempre Tonhão.

E mais soberbo ainda se pudesse constatar, caro leitor, a rapidez de projecção verbal (22,4 segundos desde a pergunta até ao primeiro hum...), a desenvoltura da expressão corporal (mãozinha direita a coçar os tomates aos 3 segundos) e, enfim, tudo aquilo que não conseguimos ainda, hum, captar.

"O jogo tem 90 minutos": a válvula de escape do sistema tendencialmente perfeito. Se o Tonhão ganhar o jogo ninguém vai ver o que é que ele andou a dizer. O que as pessoas querem saber é como é que ele marcou o golo que elas viram quarenta vezes repetido na televisão em cerca de trinta ângulos e velocidades diferentes. Se, por outro lado, o Tonhão perder o jogo e algum jornalista for vasculhar entrevistas anteriores, e reclamar que afinal o Tonhão não acertou - na vitória -, o Tonhão responderá se quiser: "pois não, mas o jogo também não teve 90 minutos, e aí é que estava o mistério do fim da frase. Não percebeu?"

Mas que não se salte logo prós penalties: "a bola é redonda". Enigmático não chega. Chovem-me sapos por dentro da cabeça. Ora reparem, também viram?, repararam como ele carregou a cara, como se sofresse um pequeno choque eléctrico mas em câmara lenta e da frente para trás, um esforço ao mesmo tempo de respiração quando entre "a bola é" e "redonda" parece que vai parir o universo e fecha os olhos como se os fosse engolir? Claro, só pode ser um sinal secreto de início de comunicação extra-sensorial, um fenómeno paranormal, superior, imperceptível ao leigo distraído. Tonhão é um exemplo. Um discreto exemplo que não gosta de dar nas vistas (sobretudo dos espelhos). O que tu quiseste, Tonhão, foi dizer a toda a gente que os espelhos são maus. Foi isso que nos tentaste transmitir quando escangalhaste a cara daquela maneira enquanto falavas. Obrigado!

E se a bola é redonda, o écran do meu computador é rectangular. Como o écran da tua vida, Tonhão, o campo desse jogo onde nos ensinas a sonhar. Porque o teu discurso contagia e um mais um somos dois. Ou muitos mais se for preciso. E mainada.

Rui Costa

SOBRE A PRISÃO DUM SEU GALEGO A SEU CUNHADO MANUEL MACHADO, SENHOR DA TERRA D’ANTRE HOMEM E CÁVADO

Inda que eu ria e me cale,
que me eu faça surdo e cego,
bem vejo eu porque o da Vale
correu tanto ao meu galego!
Como c’um leão fez festa!
Mas inda mal, a la fé,
porque um escrito na testa
não traz cada um de quem é.

Antre craros e escuros,
ladrões de seiscentas cores
andam por aqui seguros,
não lhe saem tais corredores.
Após quem torna por si
e primeiro mata ou morre
não corre o da Vale assi,
que após um tolo assi corre.

Bom matador, bom ladrão
que fugindo arma entretanto,
deixou acolher bastião,
que pica e não rende tanto!
Vive pola tua pena,
outrem prenda, outrem condene,
não me toque no da pena
em que te as barbas depene.

Escreves pólo Ribeiro,
anda após o mais proveito.
Hás-de pagar o dinheiro,
ganham a torto ou a dereito.
Deixa andar os encartados,
deixa-os, que tem os caminhos
de palhetos ouriçados,
que andam como porcos espinhos.

Come e bebe, pois te presta.
Não cures das assoadas
que se vem juntas à festa
e vos têm todos em nadas.
Onde vires um coitado
que, em te vendo, perde a cor,
dá após ele, homem ousado!
Não se vá tal malfeitor!

Executores da lei,
havei vergonha algum dia!
Este chama: aqui del-rei!
estoutro chama: a valia!
outro chama: Portugal!
De varas não há i míngua.
Desata a bolsa, que val,
traze sempre atada a língua.

Sá de Miranda
Sá de Miranda presume-se ter nascido em Coimbra, em 1481. Estudou Gramática, Retórica e Humanidades, vindo a fazer o curso de Leis na Universidade de Lisboa. Frequentou a corte de D. João III, seu amigo e protector. Partiu para Itália após a morte de seu pai. Aí conviveu com alguns dos mais famosos escritores que haviam participado no movimento cultural da Renascença. Regressou a Portugal em 1526, introduzindo nas Letras o dolce stil nuovo das novas formas renascentistas: soneto, canção, ode, elegia, écloga, as composições em oitavas, que foi o primeiro a cultivar entre nós, assim como o teatro em prosa. Casou com Briolanja de Azevedo em 1552 e passou a viver no Minho, dedicando-se à família, à escrita e ao cultivo da terra. Muito atento ao que se passava no seu país, as últimas composições estão repletas de comentários sociais e moralistas, bem amargos e pessimistas. Minado de melancolia, faleceu em 1558. »