31.7.05

Fragmentos # 1 - Auto-retrato

Olhei essa entidade. De mim, explicaram-me palavras na parede, recordações de água. O espelho descobria, fascinada, uma pessoa, aparição fulminante. Ele e um outro anunciavam a planície viva. Do muro, a realidade fitava-me em adulta: és tu sombra, possível eu. Imaginara qualquer reflexo longe, o eco batia comigo no sítio onde voltei apenas voz. Agora acreditava ser de espelho, com a face vira o olhar em vidro. Então, respondia, amigo de medo. Explicaram-me tarde o dever. Setembro mostra o cuidado que é próprio de ser no outro. Também me levantei, como da primeira vez. Dormíamos, desde sempre nos olheiros, individualidade, gruta ao espelho. Então, achava que nas primeiras vezes, não vemos. Os olhos na planície escura, alguém perguntava. Diante das manhãs repetia, longe reflexo. O eco via em mim desejo de ser voz. Um banco ao lado, coisa que até entendia, por cima desse muro sozinho. Olhei os anos, lenda misteriosa, olheiros sonoros. Repetiria com cada irmão o alarme de uma indiferença de mim: espelhos irmãos no monte mãe. Coloquei-me no guarda-roupa onde existem. Ser só, o muro vivera. Assim ignorava, absolutamente, o nosso quarto. Era apenas som. Onde me metia, voltava do pátio, lá me excedi. Cumpri, irmãos, o muro dizia. Eu vi o eco no monte. Mas quando achava que era eu, subia o banco para ver o que tinha. A voz era ser dessa entrada de não poder levar. E vi e volta. Um amigo que vivesse assim da nossa vez.. És muito, porque em seu reflexo estava. Apenas um mês e eu mais anos, para nada, onde estás? O que fazer? Ricochete donde era, perigosa casa habitava, um local perto de fixar. Os meus, quem pode agora, tenho uma inteira espécie de eco. Deitei-me em mim e lembro-me vivo desse eco são. O eco era eu.
Maria João

30.7.05

ARteoRIA # 1: Emergente

Emergente é um artista surgindo, primeiramente, em eventos colectivos cheios de gente, organizados por gente que já foi emergente, os emergentes seniores, que só organizam os eventos com emergentes, para poder dizer que também trabalham com gente. Os emergentes produzem arte política com novas tecnologias, usando títulos em inglês, porque apesar da emergência ser portuguesa, existe sempre a estratégia da internacionalização, uma emergência com carácter universal. Os emergentes produzem multimerdas, com o objectivo de serem sempre coerentes, não se vá dar o caso de deixarem de ser emergentes e fazerem-se gente, numa retrospectiva onde sejam julgados absurdos na sua emergência. A emergência é uma estratégia eficaz e coerente, apesar dos emergentes terem sempre um certo espaço para a incoerência, porque o emergente é um artista enquanto novo. Emergente, à superfície, é um novo detergente: lava velhas nódoas, entranhadas, mas não deixa a roupa branca, não, até porque o sujo já está lá há muito mais tempo. Os emergentes só conseguem deixar a roupa branca quando ela tem cor, o que não quer dizer que eliminem o sujo. A cor, segundo um emergente, é um ornamento artificial, decorativo, formal ou poético. Estas últimas quatro categorias, habitualmente, são colocadas no mesmo saco por um emergente, que na sua detergência é um crítico, questionando sempre o que é artístico, no ponto de vista do seu alargamento, com vista a ampliar o campo da arte para si próprio. O emergente aparenta sempre uma ascese conceptual, é um intelectual que lava daí as suas mãos: matéria é coisa porca, coisa anal, o emergente é muito oral. A estética emergente segue o zeithgeit onde impera o horror aos espaços vazios, optando pela instalação, um coerente e eficaz gesto de acumulação no espaço, com vista à criação de ambientes preenchidos totalmente com o ego, através de uma grande estimulação da visão em movimento, acompanhada por interferências sonoras. O detergente emergente simula combater as nódoas, mas no fundo quer tornar-se uma delas: a verdade é que com o tempo, o emergente deixa de ser detergente, passa a ser gente ou seja gordura sebosa que entranha em qualquer tecido, mesmo os melhores.
Maria João

ARteoRIA # 2: Sessão de Psicanálise

- Qual é a tua primeira recordação de infância?
- É no monte da minha mãe, onde passávamos férias...
- E como era?
- Era verde...
- E uma vaca tinhas?
- Não. Tinha uma mula, lembro-me de andar de carroça. Tinha uns gansos que eram muito bonitos, mas perigosos. Serviam de guardas e assopravam como serpentes...
- E quando ias à vila?
- Não ia à vila... ia a casa da minha avó, numa aldeia ali perto.
- Ah, afinal ias....! Havia lá algum jardineiro?
- Não.
- A sério, nem um chofer?
- Não, havia as empregadas e a cozinheira.
- O quê, menina com bochechinha rosada e não havia lá nenhum homem?
- Não, mas tenho três tios, um pai, três irmãos e primos.
- Voltando ao monte, tinha água e luz?
- Sim, tinha água canalizada e a luz era em candeeiros a petróleo.
- Lembras-te da luz, como era o som?
- Qual som?
- Concentra-te no som do candeeiro a petróleo. O que havia lá mais?
- A lareira.
- Viste um fénix azul a sair do fogo?
- O que é isso?
- Bolas, a miúda nem vocabulário tem...
- Do fogo diziam para ter cuidado, quem mexe no fogo faz xixi na cama.
- E fizeste?
- Fiz mais tarde, na adolescência.
- Acho que a tua idade sexual é a adolescência, uma idade muito perigosa...
- Foi horrível, lembro-me das primeiras bebedeiras, só chorava...
- Nunca foste a um estádio de futebol?
- Só a um concerto de Rock e detestei.
- Bom, acho que isto já vem do antigo Egipto, se tu entrasses num estádio de futebol, cheio de atletas, passarias por eles sem saber o que fazer. São querubins, não têm sexo...
- Sim, acho que não saberia bem o que fazer.
- E estavas a mentir. A primeira recordação de infância que se tem é de meter o dedo no cu para mexer na merda...
- Claro que estava a mentir, tens razão. Lembro-me perfeitamente desse momento, saí da casa de banho e fui mostrar o dedo no quarto, onde ralharam comigo...
- Tens mesmo jeito para te fazeres de estúpida...

Maria João

SMSs DE LONDRES

LONDRES I
Subitamente, pela primeira vez: as pessoas olhando umas para as outras.

LONDRES II
O senhor polícia veio tirar-me a lata de cerveja da mão: é proibido (disse) beber na rua em toda a área de Westminster.

LONDRES III
Dizia o António Aleixo (cito de memória mas acho que é assim), desconhecendo a cidade e os novos verbos:

Como um só não é bastante
nós vamos ter, certamente,
Um guarda por habitante
Pra que não roubem a gente.


Em muitos sítios públicos de Londres (pronto, reparei mais nos bares) pode ver-se um cartaz com o desenho de dois olhos e a frase: "A melhor arma contra o terrorismo".

LONDRES IV
Quando o blow job é ultrapassado pelo blow up job.

LONDRES V
O melhor presunto português comi-o em Londres (shame on me).

Rui Costa

Tav 69

9
E se beber meio cálicezinho
e se é de batata
só pode estar na cave
e se há uma corrente de ar
e se a porta se fecha
ninguém nos ouve
e eu
apesar de tudo
quero ficar contigo
fanhoto.

10
No dia do documentário
do Paul Bowles
não faltou a luz
não liguei o rádio
nem atendi o telefone
a minha avó
adormeceu no deserto.

11
Ganzonery

(grafito na estação de metro do marquês)

12
No metro é sempre de noite
o melhor é entrar no metro à noite
é dupla viagem
uma delas grátis
uma delas olhou para mim
e eu tirei o pé do banco
a poesia partida acabou
é altura de voltar
a pôr a bota no banco
para que a senhora diga
- incomodas-me pá
- dá-me mais jeito para a desenhar
- posso ver?

13
O pensamento da Larva de Honra
guarda o valor
abstracto da sua leitura.

Nuno Moura

(ver também 1, 2, 3 e 4
sem perder 5, 6, 7 e 8...)

POÉTICA

É o silêncio que deves escutar
o silêncio por detrás das alusões, das elisões
o silêncio por detrás da retórica
o silêncio do que se chama a perfeição formal
Isto é a busca do não-sentido
até no próprio sentido
e reciprocamente
Ora tudo o que com arte escrevo
justamente é sem arte
e todo o cheio é vão
Tudo o que escrevi
está escrito entre as linhas


Tradução de Vasco Graça Moura.

Gunnar Ekelöf

Gunnar Ekelöf nasceu em Estocolmo, Suécia, em 1907. Ausentando-se com frequência do seu país, estudou em Inglaterra as civilizações orientais, passou vários períodos em França, pensando mesmo abandonar a pátria definitivamente, esteve em Itália, Grécia, Turquia, etc. Aquando da estadia em Paris, onde estudou música, entrou em contacto com o cubismo e com o surrealismo. Publicou o seu primeiro livro em 1932, bastante hostilizado pelo seu niilismo de cariz modernista: «dá-me veneno que me mate ou sonho de que viva». Com uma vida emocional bastante atribulada, Ekelöf rendeu-se aos prazeres do álcool. Trabalhou como crítico literário no Social-Demokraten e fundou a revista avant-garde Karavan. Foi sempre um outsider, sofrendo por isso de ostracismo e incompreensão permanentes. Faleceu no dia 16 de Março de 1968, deixando uma obra rica em referências filosóficas, míticas e históricas.

29.7.05

Colaborações # 3

A Maria João Lopes Fernandes é alentejana de 69, mais precisamente de Évora. Deu a volta toda ao Ar.Co e, sem pedir licença, licenciou-se em Artes Plásticas – Escultura, na Faculdade de Belas-artes da Universidade de Lisboa. Estuda Canto, pós-graduou-se em Estética e Filosofia da Arte, andou a espalhar talento por diversas revistas da especialidade. De vez em quando lecciona, outras vezes organiza. Por exemplo: atelier de artes plásticas no Escolhas – Programa de combate à delinquência juvenil, em Carnaxide. (N.R.: havemos de falar melhor sobre isto, ó Maria João.) É a primeira voz no feminino a subir ao palanque dos colaboradores insones. Minhas senhoras e meus senhores, seres e entidades, múmias e sonâmbulos deste e doutros mundos, anjos, arcanjos, querubins, meninos e meninas, deuses, duendes, gnomos e energúmenos, lémures e grifos, ninfas, xamãs, é com muita honra que vos apresento:

Maria João Lopes Fernandes, fotografada por Eurico Lino do Vale

Cenas de Infância

Cenas de Infância Op. 1 - Joaninha Pintora

Um pequeno ovo Kinder chocolate tinha no seu interior um ovo mais pequeno amarelo. Eu não vi o ovo de chocolate que ele comeu, mas sei como é, ele depois ofereceu-me o brinde. Dentro do ovo amarelo estava uma Joaninha de plástico, com umas bolinhas de aguarela e um pequeno pincel. A Joaninha estava desmontada e vinha com instruções para se colocar a funcionar. Mal a vi, tratei logo de a colocar em acção. É claro que tudo isto é metafórico, porque a Joaninha era tão pequena quando inteira, que apenas entendíamos que continha aguarelas debaixo da carapaça, quando abria as asas. Aliás, possuía uma circunferência amarela, azul e vermelha no seu interior aberto. O pincel encaixava, graciosamente, numa das suas patas, mas a Joaninha não pinta, a Joaninha pintora brinca, voa, voa...

Cenas de Infância Op. 2 - Eco

A Joaninha está muito atarefada esta manhã: foi buscar um banco de madeira, que é quase maior que ela, e arrastou-o para o pátio da entrada do monte, já o conseguiu colocar junto ao muro. Assim, subiu o banco para puder sentar-se no muro e olhar a planície. A Joaninha no topo do muro chama pelo eco, um amigo novo, que anda ali escondido e repete tudo o que ela diz. Os seus irmãos mais velhos já lhe explicaram muitas vezes o que é o eco, mas a joaninha não acredita. De cima do muro, vê apenas a planície e um outro monte muito longe. Os irmãos descreveram-lhe como a sua voz batia num muro lá muito ao fundo, voltando outra vez. Ela continua a insistir que alguém está ali escondido e observa atentamente a planície, perguntando:
- Ó eco, quem és tu? Ó eco, porque me respondes assim? Ó eco, onde estás? Ó eco, és meu amigo?

Cenas de Infância Op.3 - Bolo de Noiva

M.M: Sabes uma coisa? Pedi-a em casamento outro dia. O que é que tu achas?
M.J: Ó Joaninha, é claro que ele me pediu em casamento só por causa do bolo de chocolate que fiz. Disse que assim, só ele é que pode comer do bolo, tu não podes, nem a tua mãe, nem o teu pai. O meu bolo de chocolate é independente, não acho isso certo...
Joaninha: Eu também não, porque o chocolate que comi há bocado, se fosse maior, também o tinha oferecido a toda a gente...

Cenas de Infância Op.4 - Sombra

A Joaninha estava às escuras na cama, a tentar adormecer e sentiu uma sombra que se mexia do seu lado esquerdo, junto à almofada. Ficou assustada, esta sombra era um braço de a apanhar e levar no escuro, queria roubar-lhe o sono, sabia a medo e frio, ficou toda arrepiada. Então, com muito cuidado, estendeu o braço direito e acendeu o candeeiro na mesinha de cabeceira ao seu lado: não havia sombra nenhuma, o seu braço esquerdo estava debaixo da almofada, mal o sentia devido ao peso da cabeça sobre ele. O braço de a apanhar e roubar o sono, afinal, era o seu dormente braço esquerdo. O problema foi ao abrir a luz: a irmã que estava a dormir na cama do outro lado da mesinha de cabeceira, de repente sentou-se, muito direita e de olhos abertos perguntando:
- Que horas são?
Respondeu-lhe que era tarde e voltou a apagar a luz. De manhã, quando o despertador tocou e foi abrir a janela, a sua irmã pregou-lhe um susto com a luz do dia, bem maior que a sombra nocturna do seu braço: ela continuava sentada na mesma posição, muito direita, com a roupa nos joelhos, perguntando as horas, de olhos abertos. A irmã dormira assim toda a noite. A Joaninha apenas disse que já eram horas de acordar.
Maria João

FAZENDO AMOR EM POESIA

a partir de A. Breton
Numa guerra onde cada segundo conta
o Tempo cai no chão
como a sombra de uma árvore
debaixo da qual nós dormimos
num barco de madeira feito da árvore
por um carpinteiro desconhecido
além do mar
onde flutuam caroços de pêssegos
disparados por um artilheiro a cabo de
munições
com um canhão do qual a boca arranca
buracos em forma de coração
ao horizonte da nossa carne
moída de sol
muda de estupefacção
entre o acto do sexo
e o acto da poesia
planeando no ar que escurece
no momento do amor e do júbilo
não há clarividência
sob a miséria do mundo.
Tradução de André e Isabelle Lima.

Lawrence Ferlinghetti (1919)

Lawrence Ferlinghetti nasceu no dia 24 de Março de 1919 em Nova Iorque. Figura de proa da Beat Generation, doctorou-se em poesia na Sorbonne, Paris, com uma tese intitulada: The City as Symbol in Modern Poetry: In Search os a Metropolitan Tradition. Fundou, com Peter Martin, a revista City Lights, na sequência da qual nasceria a City Lights Bookstore. Acompanhou a sua acção poética com a actividade de editor, iniciando uma colecção intitulada Pocket Poets onde viria a publicar o famoso poema de Allen Ginsberg que dá pelo nome de Howl. Ferlinghetti foi uma das figuras do movimento Beat mais empenhadas politicamente, motivação que terá ido buscar aos seis meses passados em Nagasaki após a destruição da cidade japonesa no final da Segunda Grande Guerra. O seu primeiro livro data de 1955 e foi publicado na City Lights: Pictures of the Gone World.

Tav 69

5
Não te acanhes
grita a azeitona
do jantar
devesse dôlo alho
azeite e Firmino
alentejo dále.

6
Quanto mais êxodo
o campo carolo
caixa o mágio
para o Eusébio de testa
meia a campa uma bandeira
corre o homem pela linha
carboniza-o Beja
em oito sete eram mulheres
o massagista anfitreão
com a ex-ministra da agricultura
da irlanda

7
Não tenho dinheiro
mas tenho árvores
não tenho dinheiro
mas tenho dvd
não tenho dinheiro
mas tenho árvores
e dvd.

8
Chama-se terceiro dto
tem as melhores mamas do prédio
se elas caírem
serão assim os melhores poemas
poemas animados?

Nuno Moura

(Quatro segundos de um ciclo de 13.
A não perder os próximos capítulos.)

WINDOWS MONUMENTS 3 (de como o écran do meu computador é uma janela aberta para o mundo)

ITÁLICO
A torre de Pisa é o monumento mais itálico do mundo.

NEGRITO
A torre dos Clérigos é o monumento mais negrito do mundo.

SUBLINHADO
O monumento mais do mundo, gostava de o sublinhar.

Rui Costa

Colaborações # 2

Uma vez enviei um original para uma editora pequenina que eu sempre considerei muito grande. A resposta que obtive foi tão clara quanto breve: «Henrique, eu não quero editar este livro. Um abraço, Nuno Moura.» Havia mais umas coisas pelo meio, mas o que interessa está dito. Tanto que eu tenho agradecido aquela resposta, o bom senso de não me editar um livro do qual me envergonharia para o resto da minha vida, aquela transparência, tão diferente da costumeira bazófia do "editorzeco armado ao pingarelho". O destino estava traçado: fiz-me amigo do homem. E agora ele acedeu frequentar esta humilde casa. Quem é o homem? Podem dar uma vista de olhos aqui. Bem-vindo sejas, camarada, ao panteão dos colaboradores insones. E boas férias…

Tav 69

1
Não se consegue viver
com alguém que
às 22.05 está bêbedo
de felicidade a dançar
na sala com os filhos
nirvana bêbedo e pisa
os pés dos filhos
as sapatilhas de pêlo
dançam de pé
da sapatilha o tigre
do chinelo o drunk walker.

2
Ganhei tantos poemas
na bebedeira
que nem vos conto
nem vos escrevo
mas eram bons.

3
Cada vez que bebo
celebro a escrita
bebo a de tinto
e celebro a escrita
bebo a escrita
e celebro a de uísque
e nunca vomito
célebre a escrita ou não
quando vomitei no carro
da tita
não a celebrei
como queria.

4
Se não sai
de dentro dos pixeis
mais vale procurar
a porta da ravessa.

Nuno Moura

(Quatro primeiros de um ciclo de 13.
A não perder os próximos capítulos.)

28.7.05

SONETO DO SONETO

Catorze versos o soneto este é o primeiro
e ainda não disse nada (este é o segundo)
Mas quem diz que em três versos cabe o mundo?
Em três não cabe, só no soneto inteiro...

E eis mais uma quadra começada
que ao fim deste verso chega ao meio
Daqui a pouco está o soneto cheio
e eu ainda não disse - quase nada?!

Mas felizmente chega um terceto
e neste estou eu bem inspirado
Pena é que já acabou. Ó que chatice!

Mas vou salvar as honras do soneto
num verso belo de final dourado
que diga tudo o que atrás não disse

Rui Costa

27.7.05

A VIDA DE FAMÍLIA

a vida de família tornou-se bem difícil
com as contas a pagar os filhos a fazer
ou a evitar a ranhoca a limpar
a vida de família não tem razão de ser
não tem ração de querer

a vida de família jangada da medusa
é o tablado da antropofagia

mas ficam os retratos cristo virgem maria
e os sobreviventes, que vão chupando os dentes

Alexandre O'Neill (1924-1986)
Alexandre O'Neill, o maior poeta português de todos os tempos, nasceu em Lisboa em 1924. De seu nome completo Alexandre Manuel Vahia de Castro O’Neill de Bulhões, sofria de miopia - o que lhe valeu a sorte de não ter continuado os estudos na Escola Náutica de Lisboa (A Escola era uma merda.). Começou a escrever por brincadeira, depois a brincadeira tornou-se hábito e depois, pronto. Em 1946, na sequência de desacatos familiares, abandonou a casa dos pais e foi viver na casa do tio materno. Foi um dos fundadores do Movimento Surrealista de Lisboa, que viria a abandonar em 1950. Publicou o seu primeiro livro de poemas em 1951: Tempo de Fantasmas. Esteve preso pela PIDE, mas nunca fez disso curriculum. Casou com Noémia Delgado e Teresa Patrício Gouveia, de quem se divorciou em 1981. Ganhou a vida como técnico de Publicidade, mas foi sempre poeta. Passou a vida a encontrar a mesma mosca. Faleceu, de doença cardíaca, em 1986.

PARA QUÊ FOUCAULT? (1)

Foucault foi dos maiores pensadores de sempre. Tentou perceber o fenómeno do "poder" e percebeu-o, parece-me, como ninguém. Diria que a sua capacidade de abstracção invulgar lhe permitiu "sair" da realidade para a ver com maior lucidez. Paradoxalmente, Foucault sabia que este tipo de distanciamento é impossível. Quando digo "realidade" poderia talvez (impropriamente) utilizar a palavra "linguagem" ou mesmo "discurso". Foucault percebeu como vivemos dentro da linguagem. É a linguagem que nos cria. Os nossos pensamentos estruturam-se a partir de um sistema de referências que nos pré-existe e nos contamina sempre. Nada existe que esteja "fora" do poder, nem os próprios "poderosos", os detentores do poder formal (seja político, económico ou qualquer outro que tentemos "isolar"), lhe estão imunes. Desta forma, será errada a visão do poder que o tenha como algo que se pode roubar a um grupo (o grupo do poder) para entregar a outro grupo (o que não possui senão a submissão; calma, no entanto: não se quer a passividade, mas lá chegaremos). Errada porquê, essa visão? Porque pressupõe a separação de mundos, um dualismo que não cabe no pensamento de Foucault. Foucault foi um crítico do modernismo e seus inerentes dualismos, mas já é a segunda vez que emprego o conceito (dualismo). Conhecemos Descartes e o modo como pretendia, através do uso da razão, explicar o mundo. Descartes, apesar das boas intenções, cometeu um erro grave (lembram-se de "O erro de Descartes", o excelente livro de António Damásio?): quando chegou a um nível que o seu uso da razão não conseguia penetrar, chamou-lhe divino e creu que era terreno acima, plano distinto. Dualismo humano/divino, razão/espírito. E muitos outros, claro, antes ou depois: homem/mulher, orgânico/inorgânico, significante/significado. Mas esta separação de mundos é bem anterior ao Iluminismo. Platão não terá sido o primeiro mas foi, seguramente, dos mais acérrimos propagandistas da "separação de mundos" que tanta (má, digo eu) influência teve na formação da civilização ocidental. Mundo sensível/mundo supra-sensível. Depois viriam "os bons" e "os maus", e não se fale (apenas) de cinema. Nos dualismos há sempre um pólo que prevalece em detrimento do outro. Foucault, então: visão não-dualista do poder (de tudo, aliás). (intervalo).

Rui Costa

26.7.05

Desde a hora da infância eu não fui
Como outros foram - eu não vi
Como outros viram – não pude tomar
Minhas paixões duma primavera vulgar.
Da mesma nascente eu não traguei
A minha tristeza; eu não despertei
Para o júbilo comum o meu coração;
E tudo o que amei, eu amei em solidão.
Nesse tempo da infância – na madrugada
Da vida mais tormentosa – foi traçada
Das profundezas do bem e do mal
O mistério que me mantém sem igual:
Da torrente ou da fonte,
Do rubro penhasco do alto monte,
Do sol que gira em meu torno
Num matiz dourado de Outono –
Do relâmpago no céu
Que tão perto de mim se deu –
Da tempestade e do trovão,
E da nuvem que adquiriu a feição
(Quando azul era o resto dos Céus)
De um demónio aos olhos meus.


Versão de HMBF.

Edgar Allan Poe

Edgar Allan Poe, filho dos actores nómadas David Poe Jr. e Elizabeth Arnold Hopkins, nasceu no dia 19 de Janeiro de 1809 em Boston. Poeta, ficcionista e crítico literário, ficou conhecido mormente pelos seus contos de timbre soturno. Muitos atribuem-lhe a criação do policial e do thriller de cariz mais lúgubre. Órfão desde os 3 anos, viveu em Inglaterra entre 1815 e 1820. Em 1826 entrou para a Universidade de Virgínia, vindo a abandoná-la no primeiro ano por dívidas de jogo incomportáveis. Nesse mesmo ano publicou, anonimamente, o seu primeiro livro de poesia: Tamerlane and Other Poems. Em 1832 obteve um prémio pelo seu conto MS. Found in a Bottle. Trabalhou no Southern Literary Messenger e casou com uma prima sua chamada Virgínia que contava apenas 13 anos à altura do casamento. Foi ganhando uma forte inclinação para a bebida, tornando-se alcoólico. O problema agravou-se com a morte de Virgínia em 1847. Em 1849 foi encontrado numa valeta de Baltimore em puro delírio. Morreu poucos dias depois, a 7 de Outubro de 1849.

25.7.05

MANIA DO SUICÍDIO

Às vezes tenho desejos
de me aproximar serenamente
da linha dos eléctricos
e me estender sobre o asfalto
com a garganta pousada no carril polido.
Estamos cansados
e inquietam-nos trinta e um
problemas desencontrados.
Não tenho coragem de pedir emprestados
os duzentos escudos
e suportar o peso de todas as outras cangas.
Também não quero morrer
definitivamente.
Só queria estar morto até que isto tudo
passasse.
Morrer periodicamente.
Acabarei por pedir os duzentos escudos
e suportar todas as cangas.
De resto, na minha terra
não há eléctricos.

Rui Knopfli

Rui Knopfli nasceu em Inhambane, Moçambique, em 1932. Fez os estudos secundários em Lourenço Marques, continuando a estudar em Joanesburgo - África do Sul. Entre 1958 e 1974 foi delegado de propaganda médica. Publicou o primeiro livro, O País dos Outros, em 1959. Foi director do jornal A Tribuna entre Maio de 1974 e Fevereiro de 1975. Co-dirigiu, com Eugénio Lisboa, os suplementos literários desse jornal e do A Voz de Moçambique. Lançou, com João Pedro Grabato Dias, os cadernos de poesia Caliban (1971-72), que reuniram colaboradores como Jorge de Sena, Herberto Helder, António Ramos Rosa, Fernando Assis Pacheco, José Craveirinha, Sebastião Alba, etc. Dirigiu o caderno Letras & Artes (1972-75), da revista Tempo, ali tendo publicado traduções de inúmeros poetas. Deixou Moçambique em Março de 1975, onde voltaria uma única vez - em Outubro de 1989. Fez parte de uma geração de moçambicanos expatriados, que incluiu os poetas Alberto de Lacerda, Helder Macedo e Virgílio de Lemos, o cineasta Ruy Guerra, os filósofos Fernando Gil e José Gil, o arquitecto Pancho Miranda Guedes, o fotógrafo Pepe Diniz, a pintora Bertina Lopes e o ensaísta Eugénio Lisboa. Radicou-se em Londres em 1975. Aí exerceu, durante vinte e dois anos consecutivos, o cargo de conselheiro de imprensa (1975-97) junto da Embaixada de Portugal. Em 1984 recebeu o prémio de poesia do PEN Clube. Faleceu em Lisboa no ano de 1997. (a partir daqui)

O POSTADOR NATO

Para o postador nato a dificuldade está em não fazer o post excelente, fabuloso, fundamental. Ou seja, o post perfeito. O post imperfeito é que é o grande, o único objectivo. Só as loucas é que sonham com os príncipes encantados. Ou seja: altos, fortes, esbeltos, além de corajosos, gentis, amorosos, enfim, perfeitos. Isto é: chatos como a potassa posta em sossego no tubo de ensaio com uma boa meia-dose de pó de talco. A potassa no fundo do tubo, de saia recolhida e pés para dentro, a cabeça inclinada devido à vergonha e a doses maciças de educação sentimental, o nosso pó de talco bem aprumado, com as mãos nos bolsos, no outro canto do tubo, a olhar para o céu, um exemplo de virtude, pensando agora se não há-de tirar as mãos dos bolsos, a primeira meia hora passa, olhando agora para as pontas dos sapatos, uma mancha ali, não sei como é que não vi, por causa disto quase se sente indisposto, pensa desistir, entretanto é outono e a potassa continua completamente educada do outro lado do tubo, certamente um pouco mais impaciente, quem é que pode censurá-la, com o frio que faz e agora já às portas do Inverno, o nosso herói resolve tomar a iniciativa, diz "já te dava uma...", a potassa estica a cabeça como que a confirmar aquilo que ouvira, de quase adormecida que estava, não a enganaram os ouvidos, posso confirmá-lo, eu sei melhor do que vocês porque sou eu que estou a relatar esta história, ela pensa "estava a ver que não", e o que pensa a seguir não anuncia, porque é educada, mas digo-vos eu, para que não digam que estou em vantagem, "estava a ver que não desenguiçava", é o que ela pensa mas não diz, embora não lhe falte vontade, de dizer e talvez de algo mais, mas agora já estou a pôr a carroça à frente dos bois, digo, dos dois, foi ele agora quem falou, "já te dava um soneto de amor", continua, cavalheiro, generoso como sempre, e ela pensa mas não diz "se me desses mas é outra coisa", mas o que ela lhe responde é, "ai que simpático, e ainda por cima tão tímido", e ele sorriu-se e nós sabemos que corou, é fiel o relato deste pequeno romance, pequeno em tamanho por ter o seu palco num tubo de ensaio, grande no sentido, porque aquele tubo de ensaio é uma metáfora do universo, prossigamos, veio a primavera com os seus aromas e chilreios, passou a sua frescura e passamos nós ao verão, quase não bastam os corpetes à nossa potassa para conter a exultação interior, é da paixão que a distância alimenta e a paciência consome, se não leram as doze últimas linhas também não perderam muito, está tudo na mesma, com a diferença que apontei, agora é verão, quem sabe as surpresas que nos reserva, veremos, a nossa potassa ofega com a temperatura, ardem-lhe os pensamentos na cabeça, agora quase fomos poéticos, perdoe-se-nos o excesso, o verão quando nasce é para todos, a nossa potassa vitupera moderadamente a constrição dos folhos, a incomodidade que não lhe tolha a compostura, mas tolhe, a potassa respira e ao encher o peito de ar o dique cede, o decote da nossa heroína rebenta, o tubo de ensaio admite finalmente a sua pequenez e estilhaça-se em mil pedaços que voam pelo ar, o nosso herói não ganha para o susto e esconde-se debaixo do casaco, a potassa olha à sua volta e é o mundo todo que nasce da explosão, eu admito ter sido esta a origem do universo, mas isso é outra história, foi aprendida a lição, perfeição do caralho nunca mais, pensou a nossa potassa e disse-o, assim, com todas as letras, e foi o post mais imperfeito que jamais se viu.

Rui Costa

23.7.05

PRIMITIVOS

Ouvi falar da gente civilizada,
os matrimónios temperados por conversas, elegantes e
honestos, racionais. Mas tu e eu somos
selvagens. Tu chegas com um saco,
entregas-mo em silêncio.
Sei logo que é Porco Moo Shu pelo cheiro
e percebo a mensagem: dei-te imenso
prazer ontem à noite. Sentamo-nos
tranquilamente, lado a lado, para comer,
os crepes compridos suspensos a entornar,
o molho fragrante a escorrer,
e de esguelha olhamos um para o outro, sem palavras,
os cantos dos olhos limpos como pontas de lança
pousadas no parapeito para mostrar
que aqui um amigo se senta com um amigo.

Tradução de Margarida Vale de Gato.

Sharon Olds (n. 1942)
Sharon Olds nasceu em 1942 em São Francisco. Licenciou-se na Universidade de Stanford e depois mudou-se para a costa leste para se doutorar em letras na Universidade de Columbia. Publicou oito livros de poesia, entre os quais se destacam Satan Says (1980, vencedor do San Francisco Poetry Center Award), The Dead and the Living (1983, vencedor do Lamont Poetry Prize e do National Book Critics Circle Award), The Father (1992) e Blood, Tin, Straw (1999). Orienta várias oficinas de poesia nos Estados Unidos, é directora do curso de poesia criativa da Universidade de Nova Iorque e fundou o programa de escrita criativa para pessoas com deficiências físicas no Goldwater Hospital em Nova Iorque. Foi Poeta Laureada do Estado de Nova Iorque no biénio de 1998-2000. (In Satanás Diz, Antígona, Junho de 2004)

22.7.05

SEM OUTRO INTUITO

Atirávamos pedras
à água para o silêncio vir à tona.
O mundo, que os sentidos tonificam,
surgia-nos então todo enterrado
na nossa própria carne, envolto
por vezes em ferozes transparências
que as pedras acirravam
sem outro intuito além do de extraírem
às águas o silêncio que as unia.

Luís Miguel Nava, 1957-1995
Luís Miguel Nava nasceu a 29 de Setembro de 1957 em Viseu. Em 1975 foi para Lisboa e inscreveu-se no curso de Filologia Românica da Faculdade de Letras. Em 1979 publicou Películas, Prémio de Revelação da A.P.E. Concluída a licenciatura, em 1980, frequentou o mestrado de Literatura Francesa, começando a colaborar como crítico literário em jornais e revistas. Exerceu funções de assistente do Departamento de Literaturas Românicas entre 1981 e 1983. Nesse ano partiu para Oxford, aí permanecendo durante três anos como Leitor de Português. Em 1986 foi viver para Bruxelas, onde desempenhou o cargo de tradutor do Conselho das Comunidades Europeias. Foi brutalmente assassinado em Maio de 1995 no seu apartamento de Bruxelas, deixando instituída por testamento a Fundação com o seu nome que publica a revista Relâmpago e atribui um prémio anual de poesia.

21.7.05

OS PAPELOTES

Nunca choraremos bastante
termos querido ser belas
à viva força
eu quis ser bela
e julguei que para ser bela
bastava usar canudos
pedi para me fazerem canudos
com um ferro de frisar e papelotes
puxaram-me muito pelos cabelos
eu gritei
disseram-me para ser bela
é preciso sofrer
depois o cabelo queimou-se
não voltou a crescer
tive de passar a andar com uma peruca
para ser bela é preciso sofrer
mas sofrer não nos faz forçosamente belas
um sofrimento não implica como consequência
uma recompensa
uma dor de dentes pode comover a nossa mãe
que para nos consolar sem saber de quê
nos dá um rebuçado
mas o rebuçado ainda nos faz doer mais os dentes
a consequência de um sofrimento
pode ser outro sofrimento
a causa é posterior ao efeito
o motivo do sofrimento é uma das consequências
do sofrimento
os papelotes são uma consequência da peruca

Adília Lopes (n. 1960)
Adília Lopes (pseudónimo de Maria José da Silva Viana Fidalgo de Oliveira) nasceu em1960, em Lisboa. Tem vivido sempre na mesma casa, habitada pela família da sua mãe desde 1916. É solteira, não tem filhos, vive com dois gatos: a Ofélia (com 13 anos) e o João Paulo (com um ano). Começou por frequentar colégios de freiras. Na Universidade, em Lisboa, licenciou-se em Literatura e Linguística Portuguesa e Francesa (1983-1988), fez também estudos de Física, Química e Matemática que não concluiu (1978-1982). Especializou-se em Linguística como bolseira do Instituto Nacional de Investigação Científica (1989-1992). Especializou-se em Ciências Documentais (1992-1995). Trabalhou nos espólios de Fernando Pessoa, Vitorino Nemésio e José Blanc de Portugal. Em 1999 ganhou uma bolsa de criação literária do Instituto Português do Livro e das Bibliotecas. Escreveu uma peça de teatro, A birra da viva, que foi levada à cena em 2000 pela Companhia de Teatro Sensurround dirigida por Lúcia Sigalho. Continua a trabalhar em teatro com Lúcia Sigalho e em crítica textual com Ivo Castro. Participa em programas de rádio e de televisão. Escreve para as revistas Livros e Pública e vive com a ajuda paterna. (biografia respigada aqui)

19.7.05

Obrigado.

Quartzo, Feldspato & Mica

PRAZERES

O primeiro olhar da janela de manhã
O velho livro de novo encontrado
Rostos animados
Neve, o mudar das estações
O jornal
O cão
A dialéctica
Tomar duche, nadar
Velha música
Sapatos cómodos
Compreender
Música nova
Escrever, plantar
Viajar, cantar
Ser amável.

Tradução de Paulo Quintela.

Bertolt Brecht (1898-1956)
Bertolt Brecht nasceu no dia 10 de Fevereiro de 1898 em Augsburgo, cidade da Bavária, parte do Império Germânico. Muito ligado à mãe, Brecht tinha um defeito congénito no coração e um tique facial nervoso. Esteve internado num sanatório para tratamentos, não se livrando de um ataque cardíaco aos 12 anos. No liceu, fundou o jornal escolar A Colheita. Começou a colaborar no jornal de Augsburgo e escreveu a primeira peça: A Bíblia. Em 1917 abandonou a escola para prestar serviço militar, não vindo a ser mobilizado por razões de saúde. Matriculou-se no departament0 de Filosofia da Universidade Ludwig Maximilian em Munique. De vida desregrada, Brecht era frequentador assíduo de bordéis. Em 1921, já depois da morte de sua mãe, casou com a cantora lírica Marianne Zoff. Trabalhou como crítico tetral, foi dramaturgo em Munique e Berlim, compôs várias peças. Admirador das obras de Rimbaud, viria a relacionar-se com o grupo dadaísta. Mais tarde viria a ligar-se ao comunismo. Em 1926 publicou o seu primeiro livro de poemas: Sermonário de Bolso. Divorciou-se de Marianne Zoff e casou-se com a actriz comunista Helen Weigel, nunca deixando de cultivar ligações amorosas anteriores. Em 1935 os nazis retiram-lhe a cidadania alemã. Exilou-se na Dinamarca, Suécia, Finlândia e EUA. Nos Estados Unidos, fez alguns roteiros de cinema em Hollywood: «Todas as manhãs, pra ganhar o pão, / Vou ao mercado onde se compram mentiras. / Cheio de esperança / Meto-me na bicha dos vendedores.» Em 1947 foi intimado a comparecer perante a Comissão das Actividades Anti-Americanas. Proclamou-se «poeta revolucionário» e afirmou nunca ter sido membro do Partido Comunista. Regressou à Europa: Paris, Zurique... Em 1949 partiu para Berlim-Leste, onde fundou com a sua mulher o Berliner Ensemble. Morreu aos 58 anos, a 14 de Agosto, com um enfarte de miocárdio.

18.7.05

Microconto

Escola Primaria

De todos, a professora é quem menos tem morrido.

O VERÃO

Quanto ao Verão: esse período nefasto e quente
Não apresenta qualquer talento para a chuva, diga-se.
Como o mudo que se concentra excessivamente
Para proferir um assobio magrinho
E acaba por tropeçar de maneira desastrada,
Caindo de uma altura
Desagradável,
E falecendo. O Verão, de facto,
Seria insuportável, não fosse
O futuro e a cerveja.

Gonçalo M. Tavares (n. 1970)

Gonçalo M. Tavares nasceu em Agosto de 1970. É Professor de Epistemologia na Faculdade de Motricidade Humana. Foi Bolseiro do Ministério da Cultura – IPLB com uma bolsa de Criação Literária para o ano de 2000, na área de poesia. O seu primeiro livro de poesia, Livro da Dança, foi publicado no ano seguinte. Desde então, tem dado à estampa inúmeros títulos de ficção e poesia. Está traduzido e representado em diversas antologias publicadas no estrangeiro. Ganhou vários prémios literários, dos quais se destaca, na poesia, o Prémio de Revelação APE/IPLB, com Investigações.Novalis.

15.7.05

VIDA

Choveu; e logo da terra humosa
Irrompe o campo das liláceas.
Foi bem fecunda, a estação pluviosa!
Que vigor no campo das liláceas!

Calquem, recalquem, não o afogam.
Deixem. Não calquem. Que tudo invadam
Não as extinguem, porque as degradam?
Para que as calcam? Não as afogam.

Olhem o fogo que anda na serra.
É a queimada... Que lumaréu!
Podem calcá-lo, deitar-lhe terra,
Que não apagam o lumaréu.

Deixem! Não calquem! Deixem arder.
Se aqui o pisam, rebenta além.
- e se arde tudo? - Isso que tem!
Deitam-lhe fogo, é para arder...


Fotografia respigada aqui.

Camilo Pessanha (1867-1926) nasceu em Coimbra, tendo tirado o curso de Direito nessa cidade. Partiu para Macau e aí exerceu funções judiciais. O contacto com a cultura chinesa levou-o a escrever vários estudos e a fazer traduções de vários poetas chineses. Foram, todavia, os seus poemas simbolistas que largamente influenciaram a geração de Orpheu, desde Mário de Sá-Carneiro até Fernando Pessoa. Os seus poemas foram reunidos na colectânea Clepsidra, publicada em 1922, tendo sido Fernando Pessoa o principal mentor da edição. Camilo Pessanha morreu em Macau vítima do ópio. (in Projecto Vercial)

14.7.05

PARTIDA

Demasiado visto. A visão abarcou todos os céus.

Por demais sofrido. Rumores das cidades, à tarde, e ao sol, e sempre.

Por demais sabido. As estocadas da vida. - Ó Rumores e Visões!

Partida na afeição e no estrépito novos!

Tradução de Mário Cesariny.


Jean-Arthur Rimbaud
Jean-Arthur Rimbaud nasceu em Charleville em 1854. Educado pela sua mãe, cedo se destacou no colégio da sua cidade natal. Em 1870 fugiu de casa pela primeira vez, vindo a ser apanhado pelos soldados prussianos. Já na Bélgica, tentou a carreira de jornalista. Posteriormente foi para Paris, onde conheceu Verlaine, regressando a Charleville para a publicação da famosa Carta do Vidente. A convite de Verlaine, regressou a Paris. Levou consigo aquele que é hoje considerado o seu poema mais representativo: Le Bateau Ivre. Rimbaud tinha apenas 17 anos quando o escreveu. Do encontro com Verlaine ficou para a história uma relação amorosa conturbada e alucinante. Verlaine abandonou a sua esposa para ir viver com o poeta em Bruxelas e, mais tarde, em Londres. Numa cena de ciúmes terá disparado sobre Rimbaud. Pouco tempo depois, o poeta das Iluminações abandonou a literatura, com apenas 20 anos, e iniciou uma vida de viagens (Estugarda, Chipre, Abissínia, Egipto, etc.) que apenas culminaria em 1891, num hospital de Marselha, onde lhe fora amputada uma perna.

12.7.05

ARTE POÉTICA

Que o verso seja como uma chave
Que abra mil portas.
Uma folha cai; algo passa voando;
Criado seja quanto avistam os olhos,
E continue tremendo a alma do ouvinte.

Inventa novos mundos e trata a tua palavra;
O adjectivo, quando não dá vida, mata.

Estamos no ciclo dos nervos.
O músculo pendura-se,
Como recordação, nos museus;
Mas nem por isso temos menos força:
O verdadeiro vigor
Reside na cabeça.
Por que cantais a rosa, ó Poetas?
Fazei-a florescer no poema;

Somente para nós
Vivem todas as coisas debaixo do Sol.

O poeta é um pequeno Deus.

Tradução possível de HMBF.

Vicente Huidobro (Chile, 1893-1948)

Vicente Huidobro, poeta vanguardista chileno, nasceu em 1893. Estudou em Santiago, tendo mostrado forte talento literário desde muito cedo. Escreveu os seus primeiros poemas quando apenas tinha doze anos. Ainda adolescente, viria a publicar um manifesto virulento contra toda a poesia anterior à sua. Em 1911 foi editado o seu primeiro livro: Ecos del Alma. Em Paris entrou em contacto com Apollinaire e Reverdy, com os quais viria a fundar a revista Norte-Sul. Poeta de uma autonomia extraordinária, rejeitou mais tarde o surrealismo, assim como o futurismo e todas as escolas poéticas que diminuíssem o poder criacionista do autor. Alguns dos seus poemas lembram os caligramas de Apollinaire, outros revelam o seu contributo para a renovação constante da poesia chilena. Fundou, em 1918, o grupo criacionista de Madrid, depois de haver participado nas implosões criativas do grupo Dádá. Morreu em 1948.

11.7.05

O olho frio

Depois da nossa morte deviam meter-nos numa bola, e essa bola seria de madeira de várias cores. Deixavam-na rolar para nos levar ao cemitério e os cangalheiros responsáveis por esse trabalho usavam luvas transparentes, para trazer aos amantes a lembrança da ternura.
Para aqueles que desejassem enriquecer a sua mobília com o prazer objectivo do ser querido, havia bolas de cristal, através das quais se poderia perceber a nudez definitiva de um avô ou de um irmão gémeo.
Sulco de inteligência, lâmpada corta-mato; os homens parecem-se com os corvos de olhos fixos que levantam voo por sobre os cadáveres e todos os peles-vermelhas são chefes de estação!
Tradução de Jorge Silva Melo.
Francis Picabia
Francis Picabia nasceu em Paris no dia 22 de Janeiro de 1879. Estudou na Escola de Artes Decorativas de Paris, tendo começado a pintar por volta de 1902. Os seus primeiros trabalhos expostos, no Salão dos Independentes em 1903, revelaram inclinações para o Impressionismo. Mais tarde, Picabia adoptou e aprofundou os ensinamentos do Fauvismo, Neo-Impressionismo, Cubismo. Já na década de 1920, Picabia tornou-se num dos principais representantes da pintura abstracta, associando-se aos grupos vanguardistas da época dos quais faziam parte Apollinaire e Marcel Duchamp. Em 1917 publicou a sua primeira recolha de poemas de inspiração dadísta e fundou a revista 391 (1917-1924). Polemista exacerbado, viria a atacar Breton e outros seus contemporâneos de forma absolutamente descarada na revista 391. Sobre Breton escreveu Picabia: «esperamos o momento em que, suficientemente comprimido, como a dinamite, fará explosão.» Sobre Picabia escreveu Breton: «Este detractor, que assim se quis, de todas as convenções morais e estéticas é um dos maiores poetas do desejo…» Morreu em Paris, no dia 30 de Novembro de 1953.

10.7.05

PERGUNTA

Deus, mais uma vez ao longo dos tempos enviaste mensageiros
Para este impiedoso mundo:
Eles disseram, «Perdoa a todos», e disseram, «Ama o próximo -
Liberta o seu coração do mal.»
Eles são venerados e lembrados, embora nestes obscuros dias
Os mandemos embora com insensíveis cumprimentos, para fora das nossas casas.
E entretanto vejo dissimulados ódios assassinando os desamparados sob a capa da noite;
E a Justiça a chorar silenciosamente, furtivamente, o abuso do poder,
Sem esperança de redenção.
Vejo jovens a trabalhar freneticamente,
Aflitos, batendo com a cabeça na pedra, inutilmente.

Hoje a minha voz calou-se; não tenho música na minha flauta:
A negra noite sem lua
Encarcerou o meu mundo, mergulhando-o num pesadelo.
E é por isso que, com lágrimas nos olhos, pergunto:
A esses que envenenaram o teu ar, a esses que apagaram a tua luz,
Será que lhes perdoaste? Será que os amas?


Tradução de José Agostinho Baptista.

Rabindranath Tagore (1861-1941)
Rabindranath Tagore nasceu em Calcutá, na casa de família em Jorasanko, em 1861. Em 1875 a sua mãe faleceu. Dois anos depois, o poeta começou a publicar regularmente no jornal mensal da família, Bharati. Em 1878 visitou, pela primeira vez, a Inglaterra. Casou-se em 1883, vindo a sua mulher a falecer em 1902. Nos anos seguintes Tagore virá a perder igualmente o filho Rani (1903), o seu pai (1905), o filho Samindra (1907) e a filha mais velha, Bela (1918). Em 1913 foi-lhe outorgado o Prémio Nobel da Literatura. Em 1915 encontrou-se, pela primeira vez, com Gandhi. Viajou pelo Japão, Estados Unidos, França, Holanda, Suiça, Alemanha, etc. Em 1915 foi-lhe atribuído o título de Cavaleiro, que viria a devolver, em 1919, na sequência do massacre do General Reginald Dyer em Amritsar. Em 1921 inaugurou Visna-Bharati, a sua universidade de Santiniketan. Em 1928 começou a pintar, vindo a expor alguma da sua pintura em várias capitais europeias. Em 1932 morreu o único neto do poeta que virá a falecer, em 1941, na cidade de Calcutá.

9.7.05

De «31 Poemas de Bolso»

X

Formasitalianas ovalidadesmolesemmarchalentaelipsoidal
docementecoloridasdeluzloura

Meus pés e minhas costas aquecem

O fogo pegou

XIV

Beijosestertoresmotorescampainhascanhõescomboios

vozestrovõestempestadesgritosestalidosqueixascantos
mentirasodiosamoresalegriashomensanimaismáquinas
Que barulho quando não se ouve nada!


Tradução de Mário Cesariny.


Pierre Albert-Birot nasceu no dia 22 de Abril de 1876 em Angoulême. Teve uma infância e uma adolescência difíceis, devido a uma situação familiar degradante. Em 1892 foi viver para Paris com a família, onde frequentou a Escola de Belas-Artes praticando escultura e pintura. Ao mesmo tempo, foi-se dedicando à escrita de poemas. Em 1896 casou com Marguerite Bottini, com quem teria quatro filhos. Trabalhou como restaurador de objectos de arte até 1950. Casou-se, pela segunda vez, no ano de 1913, com Germaine de Surville. Em 1916 saiu o primeiro número da revista SIC (1916-1919), onde o poeta viria a publicar os seus 31 Poemas de Bolso. Entretanto abandona a pintura e a escultura, para se dedicar exclusivamente às artes literárias: poesia, drama, cinema, ficção. Morreu no dia 25 de Julho de 1967.

8.7.05

MORTE

Nem temor nem esperança assitem
Ao animal agonizante;
O homem que seu fim aguarda
Tudo teme e espera;
Muitas vezes morreu,
Muitas vezes de novo se ergueu.
Um grande homem em sua altivez
Ao enfrentar assassinos
Com desdém julga
A falta de alento;
Ele conhece a morte até ao fundo -
O homem criou a morte.

Tradução de José Agostinho Baptista.

William Butler Yeats nasceu em Georgeville, Dublin, no dia 13 de Junho de 1865. Em 1867 a sua família mudou-se para Londres, regressando à Irlanda em 1880. Em 1883 ingressou na Escola de Arte de Dublin e, dois anos depois, aparecem os seus primeiros poemas na Dublin University Review. Em 1889 publicou The Wanderings of Oisin and Other Poems. Em 1891 fundou a London Irish Literary Society e fundou, com John O'Leary, a National Literary Society em Dublin. Entretanto visita Paris, os Estados Unidos, a Itália, etc. Conhece Ezra Pound em 1912. Em 1915 recusou um título honorífico que lhe foi oferecido pelo Governo. Em 1923 é-lhe outorgado o Prémio Nobel. Morreu no dia 28 de Janeiro de 1939.

7.7.05

[Pedras se contraíram sob meus pés.]

Pedras se contraíram sob meus pés.
A planta viva foi arrancada do meu corpo
e lançada em terra do não-ser.
Mas eu terei o esquecimento e a noite.
A planta viva vingará na morte.


Fotografia respigada aqui.

Maria Ângela Alvim nasceu no dia 1 de Janeiro de 1926 na fazenda do Pouso Alegre, município de Volta Grande, no Estado de Minas Gerais. É a mais velha de cinco irmãos, todos poetas. Leitora assídua de Simone Weil e de Santa Teresa de Ávila, pensa durante algum tempo seguir a vida religiosa. No início dos anos cinquenta, faz diversas viagens profissionais pelo interior do país, e depois à Argentina e à Europa. É durante uma dessas estadas que, sob o signo de Rilke, se liga a Lou-Albert Lasard. Maria Ângela Alvim falava admiravelmente dos poetas, com um fervor que só a sua penetrante lucidez podia igualar. Em breve, uma doença nervosa iria fazer desvanecer todos esses dons. No dia 19 de Outubro de 1959, Maria Ângela Alvim pôs fim aos seus dias. À excepção do livro Superfície (1950), os poemas de Alvim só serão publicados depois da sua morte.

In Superfície - Toda Poesia, apresentação de Max de Carvalho, Assírio & Alvim, Outubro de 2002.

5.7.05

FAMA E FORTUNA

Assinei meu nome tantas vezes
e agora viro manchete de jornal.
Corpo dói - linha nevrálgica via
coração. Os vizinhos abaixo
imploram minha expulsão imediata.
Não ouviram o frenesi pianíssimo da chuva
nem a primeira história mesmo de terror:
no Madame Tussaud o assassino esculpia
as vítimas em cera. Virou manchete.
Eu guio um carro. Olho a baía ao longe,
na bruma de neon, e penso em Haia,
Hamburgo, Dover, âncoras levantadas
em Lisboa. Não cheguei ao mundo novo.
Nada é nacional. Desço no meu salto,
dói a culpa intrusa: ter roubado
teu direito de sofrer. Roubei tua
surdina, me joguei ao mar,
estou fazendo água. Dá o bote.

Ana Cristina Cesar
Ana Cristina Cesar, figura de proa da poesia brasileira dos anos 70, foi um nome tutelar deste período que recebera uma herança demasiado pesada: relativizar a importância dos concretos, restabelecer os valores propostos pelos modernistas e assegurar uma personalidade literária que representasse um período de transformações culturais e políticas. Esta poeta concentra em si o desejo de mudança e intensifica uma poética despojada de qualquer densidade erudita, voltando a dar importância ao discurso quotidiano e subjectivo. Nascida no Rio de Janeiro em 1952, nesta cidade ficou conhecida como uma das principais figuras a assumir uma tendência designada por alguns críticos como «poetas marginais», que se reuniram na célebre antologia de Heloísa Buarque de Holanda 26 Poetas Hoje. Contudo, Ana Cristina Cesar distinguia-se de uma boa parte dos coetâneos. Estudou em Inglaterra, tendo-se também dedicado à tradução e a colaborações em diversas revistas e jornais literários. A sua obra foi bruscamente interrompida com o suicídio, ocorrido em 1983.
In Poesia Brasileira do Século XX - Dos Modernistas à Actualidade, selecção, introdução e notas de Jorge Henrique Bastos, Edições Antígona, Fevereiro de 2002.

Jamais colocarei uma fotografia de Alberto João Jardim no meu weblog.

O Porco

4.7.05

CREPÚSCULO MATINAL

O sol levantou-se cedinho e de bom humor.

O calor vai ser ACIMA DO NORMAL pois
o tempo está pré-histórico e propício
à tempestade

O sol chegou ao zénite.

TEM AR DE BOM TIPO.

mas não nos fiemos nisso
talvez incendeie as searas ou dê uma grande pancada

Uma pancada de sol

Atrás do hangar
um boi come até ficar doente.

(3 Julho 1914)
(Extraído de uma obra para piano)

Tradução de Mário Cesariny.
Erik Satie nasceu no dia 17 de Maio de 1866 em Honfleur, França. Devido à morte de sua mãe, em 1872, a educação de Satie ficou a cargo dos avós paternos. Aí terá recebido as suas primeiras lições de música. Em 1879 entrou para o Conservatório de Paris, onde não lhe foi reconhecido talento suficiente. Em 1885 foi readmitido, mas novamente sem grande sucesso. Dois anos depois foi viver para Montmartre, onde começou a publicar as suas primeiras composições. Em 1893 apaixonou-se por uma jovem artista de nome Suzanne Valadon que o abandonaria passados alguns meses, deixando-o fortemente abatido. Passados três anos, Satie foi viver para os subúrbios de Paris. Sobreviveu como pianista de cabaré, criando as suas próprias composições e reinterpretando outras de cariz popular. Entretanto, ao mesmo tempo que sobrevivia das canções populares, voltou a estudar. Alternava a composição com a caricatura e a escrita de poemas, canções e relatos autobiográficos. Escreveu inúmeras obras para piano, algumas delas com títulos bastante excêntricos e surrealistas: Véritables Préludes flasques (pour un chien), Embryons desséchés, Sonatine Bureaucratique, etc. Em 1919 entrou em contacto com o movimento Dada, vindo a colaborar com alguns dos seus elementos mais influentes em vários tipos de criações: música para ballet, filmes, etc. Quando morreu, no dia 1 de Julho de 1925, deixou uma quantidade enorme de objectos, textos, composições, espalhados pelo quarto onde residia.

1.7.05

O destino do homem está nas suas mãos

Gostava de me ter lembrado do centenário do nascimento de Jean-Paul Sartre (nasceu em Paris no dia 21 de Junho de 1905). Porém, não me lembrei. Dou por ele agora. Durante algum tempo julguei ser sartriano (até começar a ler Camus), embora nunca tenha sabido muito bem o que isso queria dizer. Supus que significasse um ódio incondicional à burguesia, não ter sentido de posse, assumir nas mãos o próprio destino, ser ateu e existencialista. Nunca fui à bola com a história do escritor engagée, mas houve livros de Sartre que me convenceram. Dar-vos-ei conta de três: A Transcendência do Ego, A Náusea e As Moscas. O primeiro deles tive de o ler e de o estudar no contexto de uma cadeira de Ontologia. Trata-se do primeiro ensaio filosófico de Sartre, escrito em 1934 e publicado em 1936. Foi traduzido para português por Pedro M. S. Alves e publicado, pelas Edições Colibri, em 1994. Esta edição é seguida de um interessante debate, em torno do cogito cartesiano, intitulado Consciência de Si e Conhecimento de Si. O ensaio principal resulta de uma análise sobre a fenomenologia de Husserl. O filósofo francês parte deste princípio: «o Ego não está na consciência nem formal nem materialmente: ele está fora, no mundo; é um ser do mundo, tal como o Ego de outrem.» (p. 43) Este princípio, que é já a conclusão de uma tese sobre a natureza do Ego, servirá a Sartre para estabelecer os limites de um conhecimento intuitivo e refutar o solipsismo cartesiano absolutizando a consciência: «O Mundo não criou o Eu [Moi], o Eu [Moi] não criou o Mundo, eles são dois objectos para a consciência absoluta, impessoal, e é por ela que eles estão ligados. Esta consciência absoluta, quando é purificada do Eu, nada mais tem que seja característico de um sujeito, nem é também uma colecção de representações: ela é muito simplesmente uma condição primeira e uma fonte absoluta de existência.» No fundo, encontramos nesta tese os alicerces filosóficos do primeiro romance do filósofo francês: A Náusea (1938). Li-o na tradução de António Coimbra Martins para as Publicações Europa-América. Escrito em forma de diário, abre com uma epígrafe de Céline: «É um rapaz sem importância colectiva; um indivíduo, nada mais.» Encontraremos precisamente isso em A Náusea: um rapaz a tomar consciência de si, dos seus temores e das suas angústias, numa vertiginosa e espontânea eclosão da intimidade através da palavra. Tudo gira em torno de Antoine, das suas reflexões, dos seus sentimentos, dos seus estados de consciência. Tive um professor que me dizia que para se compreender o Sartre filósofo, o melhor seria ler os seus romances. Apesar da afirmação não ter as melhores intenções, faz um certo sentido: «Eu julgava que o ódio, o amor ou a morte desciam sobre nós como as línguas de fogo da Sexta-Feira Santa. Julgava que se podia resplandecer de ódio ou de morte. Que engano! É verdade, sim, pensava que isso existia – ‘o Ódio’ -, que vinha pousar nas pessoas e elevá-las acima de si próprias. Afinal, sou eu apenas, eu a odiar, eu a amar. E essa coisa – eu – é sempre a mesma coisa, uma pasta a estirar-se, a estirar-se… sempre tão semelhante a si mesma que admira como é que as pessoas tiveram a ideia de inventar nomes, de fazer distinções.» (p. 188) Já marcada pelas posições de cariz mais fortemente existencialista, aparece, em 1943, a peça As Moscas. Está traduzida para português por Nuno Valadas e foi publicada pela Editorial Presença. Possuo a 7.ª edição, que data de 1986. As personagens e o argumento de As Moscas são reconstruções inteligentes da tragédia grega. As moscas funcionam aqui como uma espécie de símbolo da angústia que Sartre já havia enunciado nos títulos precedentes. Essa angústia aparece na forma de temor e remorso, desespero e medo. No entanto, um novo elemento entra em cena: a liberdade. A liberdade como condição essencial do homem, incondicionada ou, quando muito, apenas condicionada pela afirmação mais ou menos corajosa do que se é: «estou condenado a não ter outra lei além da minha» - diz Orestes a Júpiter. (p. 167) Talvez seja este o maior legado da obra sartriana. Se nos abstrairmos das polémicas e dos arcaísmos, teremos de aceitar que poucos foram os filósofos cujas ideias, para o bem e para o mal, se transformaram em lugares-comuns. Sartre foi/é um deles. Passados cem anos sobre o seu nascimento, Sartre permanece um autor polémico. Tem sido menosprezado e malquerido por algumas almas instaladas nos sofás da cátedra. Devo esclarecer que é possível fazer-se um curso em Filosofia no nosso país sem se estudar Sartre. No entanto, ele anda na boca do povo, mesmo não sabendo o povo o que traz na boca. Pouco mais se pode pedir a um filósofo.

ARTILHEIRO

Será que me enviaram para longe da minha mulher e do meu gato
A um médico que me auscultasse e contasse os meus dentes,
Para a linha da frente, para a fornalha duma tenda?
Será que eu assenti aos aviões das escolas?
E os combatentes enrolaram-se nos projécteis como coelhos,
O sangue coalhou sobre os meus estilhaços como uma crosta –
Será que eu ressonei, tudo pálido e quieto na torre,
Enquanto as palmas se levantaram do mar com a minha morte?
E aqui termina o mundo, na areia de uma sepultura,
Por cima de todas as minhas guerras? Foi tão fácil morrer!
Terá a minha mulher uma pensão de muitos ratos?
Terão enviado as medalhas ao meu gato?
Tradução possível de HMBF.

Randall Jarrell

Randall Jarrell nasceu no dia 6 de Maio de 1914 em Nashville. Ainda que muito superficialmente, fez parte de um grupo de poetas da Vanderbilt University denominado de Fugitives. De espírito acutilante e dotado de um sentido de humor por vezes perverso, Randall Jarrell deu que falar como crítico de outros poetas. Em 1942 publicou o seu primeiro livro de poemas: Blood for a Stranger. Nesse mesmo ano entrou para a Força Aérea, experiência que lhe daria azo a uma série bastante afortunada de poemas. Depois da guerra, foi editor, tradutor e professor. Em 1960 ganhou o National Book Award com o livro The Woman at the Washington Zoo. Entretanto, ficou mentalmente afectado por uma depressão que o terá levado a uma tentativa de suicídio falhada. Morreu em circunstâncias estranhas, numa altura em que andava em tratamentos terapêuticos, atropelado por um carro no dia 15 de Outubro de 1965.